quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A ALMA DO DESERTO

Por:
 Denise Vourakis Dias




      Sinopse: a partir das considerações de Jung sobre a presença maciça de imagens arquetípicas no inconsciente coletivo e sua relação com eventos mitologizados da natureza, o texto a seguir explora o processo simbólico existente através de uma vivência na imagem e da imagem. Através das projeções as formas arquetípicas se manifestam, assumindo alguma definição. Entre os arquétipos existentes o texto foca principalmente na anima, que humaniza a existência e cuja ausência gera perda de vitalidade e com a qual é necessário manter conexão. O texto também se utiliza da linguagem alquímica por ser essencialmente metafórica, gerando um pensamento imaginativo capaz de criar significado através de analogias.
    

Desertos são lugares impactantes e singulares. Alternam paisagens áridas, dunas de areias com oásis restauradores que acolhem aqueles que nele se aventuram numa jornada repleta de riscos. Os desertos podem se tornar verdejantes depois de um curto período de chuvas, modificando totalmente, por pouco tempo, sua fauna e flora, trocando a aridez por uma promessa de vida. Seres de toda espécie, do reino vegetal e animal se proliferam rapidamente até o último instante da estação chuvosa para se reproduzirem. Todo e qualquer deserto guarda em si essa promessa, nos animais que ali sabiamente sobrevivem fazendo uso de seus instintos, nos vegetais que sabem retirar da natureza o mínimo para a sua existência. Por serem demasiadamente inóspitos são pouco ocupados por seres humanos e dessa forma mantém intactas suas características naturais. Ali a Terra é o que é, sem interferências significativas do homem. O deserto pode, como toda expressão da natureza, ser tomado como um representante do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue apreender através da projeção, espelhada nos fenômenos da natureza (JUNG, 2013, 5).




O deserto do qual falaremos é o Atacama, localizado no Chile e próximo à fronteira com a Bolívia, como todo deserto é de difícil acesso; mas talvez seja um lugar único por suas características, alternando paisagens antagônicas: verdadeiros desertos repletos de rochas de todos os tamanhos, sem qualquer vegetação, com lagoas de águas salgadas, montanhas, vulcões, animais silvestres, muitas aves, riachos de águas frias, riachos de degelo, e também de águas quentes, gêiseres (vapores lançados por fontes termais que se encontram debaixo da terra), vegetações rasteiras, arbustos e flores (!). Uma nova paisagem se revela, mas, sobretudo uma imensa vastidão se interpõe, imensos vazios sem viva alma (?). Este deserto, guarda em si, imagens de uma natureza primitiva, pura, que se opõe formando contrastes, se o visitante for observador e se abrir para essas imagens é possível viver uma experiência única e profunda. 



Existe o vazio desértico, vazio concreto, existe também o vazio interno, vazio metafórico, destino de todo ser humano; ao adentrar o vazio é preciso coragem e destemor, porém é o vazio interno que faz caber a experiência dentro. O vazio do deserto é composto por areia, cristais e rochas onde quilômetros são percorridos e a paisagem pouco de modifica, a secura, a falta de umidade, a poeira, o sol constante, a claridade se reflete nas rochas, ofuscando o olhar, o deserto parece não ter fim. A vastidão não é acolhedora, não oferece nenhum continente, é fácil se perder ali, se perder é um grande risco, pode ser mortal perder-se nessa imensidão. Inesperadamente surgem lagoas rodeadas de muito verde, pequenos arbustos, montanhas cobertas de vegetação rasteira e aves de muitos tipos. A mudança na paisagem é impactante, parece inacreditável que exista aquele tesouro de abundância onde antes só havia pó, o vazio se alterna dando lugar a algo que preenche, nutre e acolhe com cores vivas. Os tons neutros e homogêneos das rochas e areias são substituídos por uma profusão de cores.  Se existe alguma debilidade física causada pela altitude, pelo frio ou clima seco, características do lugar, naturalmente há uma tendência a quietude, pode ocorrer uma introversão de energia, necessário economizar os passos para vencer o espaço. Um estado de semissonolência pode se instalar alterando a atenção e rebaixando o juízo, criando um vazio que torna possível ingerir a paisagem através do olhar. Esse estado da mente, do corpo, gera a adaptação necessária para absorver o que o deserto tem a dizer, absorver suas contradições e transcender a confrontação sem se abater, conceber o deserto em sua totalidade é absorver seu incrível movimento, num diálogo onde opostos se incluem, porque essa é a sua natureza. Para tomar posse da experiência intensa que o deserto provoca é necessário se apropriar de sua essência e dela retirar a energia necessária para se adaptar, encontrar o equilíbrio necessário e assumir um lugar de condução.  O deserto não possui uma única representação e investir nessa ideia é um grande risco, risco de jamais sair de seu vazio. As imagens têm o poder de ganhar vida e movimento e isso pode se dar tanto fora como dentro, desde que o convite feito, seja aceito. (JUNG, 2013: 159, 166, 181, 183, 184, 186, 187, 189).

 O deserto invade de tal forma que se torna impossível resistir a ele. É possível ouvir a alma, seu sopro mágico de vida, sua ousadia, quebrando a aparente inercia do vazio desértico nos oferecendo vida. A alma nos conduz ao sagrado e tudo que é por ela tocado torna-se numinoso. Trata-se da alma-anima, o arquétipo da vida, capaz de nos conduzir a um significado mais elevado (JUNG 2013: 58, 60). Jung define o arquétipo anima como sendo a parte feminina da alma, ela é ctônica, está relacionada a terra, ao telúrico (Jung, 2013: 119). A anima pode ser encontrada nas sizígias, conjunções de pares de opostos e a imaginação está presa a este motivo projetando-o repetidamente (JUNG 2013: 120).



“Os arquétipos são formas de apreensão, e todas as vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não seu caráter mitológico” (JUNG, 2013: 280).



A visão de uma lagoa surge na paisagem, cabe perfeitamente, suas bordas arredondadas, as águas serenas, limpas. Refúgio das aves, banquete de alimentos, refúgio para o olhar, cenário que conduz ao pleno, plenitude de vida, imagem de quase sonho. Uma solicitação para tomar consciência, nada a acrescentar, o plano que se apresenta é perfeito.
“O devaneio diante das águas dormentes dá-nos essa experiência de uma consistência psíquica permanente que é o bem da anima. Recebemos aqui o ensinamento de uma calma natural, e uma solicitação para tomar consciência da calma de nossa própria natureza, da calma substancial da nossa anima. A anima princípio do nosso repouso, é a natureza em nós que basta a si mesma, é o feminino tranquilo. A anima, princípio dos nossos devaneios profundos, é realmente, em nós, o ser de nossa água dormente” (BACHELARD, 66).  


No deserto há também o sal, ele está no ar, nas bancas dos mercados, na beira das lagoas, na água do chuveiro que impede a espuma na hora do banho, em todo lugar.  O sal seca tudo. Se faz o charque, o bacalhau, todo tipo de conserva utilizando o sal. Antes, quando não havia a luz elétrica, refrigeradores e freezers, essa era a forma de conservar alimentos. Naquela época o sal valia ouro. O sal desidrata e retira a umidade impedindo assim que bactérias se proliferem. O sal coagula, petrifica, as imagens do Atacama já se encontram conservadas na memória antes mesmo que o conheçamos pessoalmente. Não há como não ser tocado por essa alternância entre o que seca e o que encharca, o vazio e o pleno. O sal que conserva as memórias para que um dia retornem, é também o sal que resta quando a água seca. A alma não vive sem o sal, ela recorda o lugar exato onde o sal se encontra, o sal das experiências profundas, o sal que arde é o mesmo sal que cura. O sal é a própria terra (Hillman, 2011: 95, 96, 97, 98).  No deserto existem muitas minas de sal, mas o sal mais visível é aquele que surge da evaporação da água, principalmente as margens das lagoas, fica o registro da experiência, a água esteve ali, porém evaporou-se, vão-se as emoções, dessa maneira a “alma torna-se ígnea e seca” (JUNG, 2013:55), não apodrece, quando a alma quer viver é preciso salgar, assim se conserva e há de se dissolver um dia em águas restauradoras para novamente secar. Dissolve (solutio) e coagula (coagulatio), às vezes terra, às vezes água, esse é seu movimento, a partir de elementos femininos a alma se expressa, seja em uma bela lagoa ou num punhado de sal.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS 
BACHELARD, Gaston (2009). A Poética do Devaneio. SP: Martins Fontes.
HILLMAN, James (2011). Psicologia Alquímica. Petrópolis: Vozes.
JUNG, C.G. (2013). A natureza da psique. OC, 8/2. Petrópolis: Vozes.       
__________ (2013). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. OC, 9/1. Petrópolis: Vozes.
  

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