Por: Carolina de Souza Leal
“O problema é que você se apaixonou pelas minhas flores, e não pelas minhas raízes... E quando o outono chegou você não soube o que fazer”. (Autor desconhecido).
O fragmento acima, de autoria desconhecida, ilustra com precisão a vivência cotidiana de milhares de pessoas que se dispõem a relacionar-se amorosamente, e que depois de algum tempo se veem desencantadas e desconhecendo aquele(a) que escolheram.
Embora sejam temas tratados desde sempre, com vasta literatura , o amor, a paixão, encontros e desencontros estão sempre presentes nos relatos de nossos clientes, e são, muitas vezes, a demanda inicial de um processo analítico.
Toda a expertise e racionalidade de um indivíduo, toda a sua capacidade prática e dinamismo parecem sucumbir diante do “descontrole” causado por uma paixão à primeira vista, pelo sofrimento causado frente a perda de um amor.
Também não são raros os casos em que relacionamento após relacionamento, o que vemos é a repetição de padrões e comportamentos para os quais o sujeito não vê explicação, e embora pareça consciente de si, questiona-se: porque busco os mesmos “tipos de pessoas” e volto a sofrer?
Esse artigo não pretende apresentar respostas a tão complexos “fenômenos”, mas sim, discorrer sobre importantes conceitos da psicologia analítica, tais como – sombra, persona, projeção, anima e animus – e de que maneira tais conceitos podem elucidar e favorecer o manejo dos casos clínicos.
Cabe ainda dizer que, ao longo desse texto, outras questões serão lançadas, e a expectativa é que esse trabalho prossiga numa sequência de outros artigos, portanto, ele seria composto por reflexões iniciais, sobre os conceitos com os quais tivemos contato no primeiro semestre do curso.
Sobre a projeção e nossos enganos
Partindo da premissa de que os relacionamentos entre os indivíduos podem promover sobretudo o autoconhecimento, é fundamental compreender como se articulam os conceitos supracitados. No intuito de estabelecer um fio condutor nesse trabalho, iniciaremos por algumas considerações a respeito da projeção.
Marie Louise von Franz em seu livro “ Reflexos da Alma – projeção e recolhimento interior na psicologia de Jung” salienta que Jung teria tomado o termo “projeção” a partir das concepções freudianas, quando da parceria dos dois, entretanto teria dado a ele interpretações diferentes.
Segundo ela, “Jung define a projeção como uma transferência inconsciente, isto é, imperceptível e involuntária de um fato psíquico e subjetivo para um objeto exterior” (Franz, 1988), e sob essa perspectiva, projetar seria atribuir ao outro, de maneira inconsciente, “características” que são do próprio indivíduo, as quais, na maioria das vezes, ele não compreende como suas.
Em outras palavras, sendo a projeção algo involuntário, está sempre relacionada a conteúdos inconscientes, que se deslocam à consciência e vão se manifestar a partir do relacionamento com o outro.
Torna-se ainda importante dizer que, para Jung, “não são somente características negativas de uma pessoa que se projetam assim, para fora, mas também as positivas. Estas projeções levam então à supervalorização do interlocutor e à admiração desmedida, ilusionária e descabida” (Franz, 1988). Sobre essa afirmativa, é possível inferir que a chamada projeção positiva poderia ser a responsável pelas paixões à primeira vista?
Seguindo mais um pouco nesse conceito, embora haja uma diferenciação entre projeção negativa e positiva, não se pode dizer, a priori, que as projeções sejam boas ou ruins para os indivíduos ( tanto ao que projeta sobre o outro, quanto ao que recebe a projeção) visto que o encaminhamento dado a elas, individualmente, é que fará alguma diferença.
Isso porque a projeção do outro sobre o indivíduo, segundo Jung, tende sempre a obscurecer a realidade, resultando numa supervalorização ou subvalorização daquele que recebe a projeção. Em ambos os casos, a não consciência das projeções por parte dos indivíduos que se relacionam pode ser fruto de muito sofrimento e decepção. Ademais, as projeções positivas podem tornar-se negativas e vice versa, a qualquer tempo, sendo assim, o desafio de relacionar-se só aumenta.
A esse respeito, uma questão se apresenta: ao recebermos a projeção do outro e com ela nos identificarmos, pode-se dizer que ocorra uma “fusão” nas expectativas alheias e com isso nos perdemos de nós mesmos?
Anima/animus – a origem de todas as projeções
Sanford (1987) destaca Jung como primeiro cientista a descrever a união entre os princípios masculinos e femininos como parte do todo presente em cada ser humano. Sendo assim, afirma:
“Jung chamou os opostos existentes no homem e na mulher de anima e animus. Anima significa o componente feminino numa personalidade de homem, e o animus designa o componente masculino numa personalidade de mulher. Ele tirou tais palavras do termo latino animare, que quer dizer animar, avivar, porque sentiu que a anima e o animus se assemelhavam a almas ou espíritos animadores, vivificadores, para homens e mulheres”. E complementa: “A evidência empírica para a realidade da anima e do animus pode ser encontrada sempre que a psique se expressa espontaneamente. A anima e o animus aparecem em sonhos, contos de fadas, mitos, e - o que é mais importante – nos variados fenômenos do comportamento humano. Pois a anima e o animus são os Parceiros Invisíveis presentes em todos os relacionamentos humanos e em toda busca da plenitude individual por parte da pessoa.” (p 13).
No livro de Murray Stein “Jung – o mapa da alma”, há um capítulo destinado a tratar do conceito de anima/animus, denominado “O Caminho para o interior profundo”, onde fica explícito, desde o título, a importância dessa estrutura/função psíquica que é comum a homens e mulheres, e que só se torna perceptível a nós, indiretamente, ao observarmos suas manifestações, daí a importância dos relacionamentos para nos confrontarmos com tais manifestações.
Stein (2006) destaca: “anima/animus é a grande criadora de ilusão que fornece estímulo aos exaustos e dilacera o coração dos ingênuos”. Segundo o autor, para Jung, anima/animus é a origem de todas as projeções, e o ego vai viver basicamente num mundo de projeções. Isso porque não reconhecemos que anima/animus fazem parte de nós, atribuindo sempre ao externo, aquilo que na verdade nos pertence.
Com isso, pode-se entender, a partir da citação acima, que anima/animus será fonte de energia para aqueles que parecem ter desistido frente a muitas decepções amorosas ( que parecem ser sempre frutos da projeção), pois mobilizam a novos encontros/novas projeções . Ao mesmo tempo, seriam o que dilacera o coração daqueles que parecem resistir ao autoconhecimento, insistindo em não se apropriar daquilo que projetam no outro, seguindo às cegas, trocando constantemente de paixões, e repetindo, repetindo, repetindo.
Von Franz (1988) fala sobre isso e destaca esse “fenômeno” da repetição como deslocamento de projeções. Estando alheios às manifestações do inconsciente e dos conteúdos projetados, e, ao mesmo tempo, não sendo possível conhecer todo o “núcleo” de tais conteúdos inconscientes, repetidas vezes os indivíduos vão transpor de um objeto a outro as suas projeções, podendo vivenciar experiências repetidas. Daí a importância do analista como “ferramenta” para o autoconhecimento do indivíduo, e do processo analítico do próprio terapeuta, visto que também na relação analisando/analista a projeção acontece.
Sombra e Persona – dois outros importantes “ingredientes” em nossas relações
Diferentemente do que Stein (2006) salienta sobre a imagem de anima/animus como algo que suscita o desejo de avançar, o desejo de união, “a imagem da sombra instila medo e apreensão”.
O autor salienta que Sombra e Persona são um par do que Jung denominou subpersonalidades divergentes, que compõem a personalidade, e que fazem parte do universo interior de cada um de nós. São estruturas complementares, presentes em toda psique humana, consequentemente, presentes em todas as relações, assim como anima/animus.
Stein(2006) ressalta: “a persona é a pessoa que passamos a ser em resultado dos processos de aculturação, educação e adaptação aos nossos meios físico e social”. Dito de outra forma, a persona seria aquilo que consideramos conveniente mostrar de nós, o que é adequado e demandado para o convívio social e que, diferentemente da sombra, o ego identifica-se com a persona, visto que esta é mais aceitável socialmente.
Já a sombra, segundo o autor, seria “uma subpersonalidade que quer o que a persona não permitirá (...) é caracterizada pelos traços e qualidades que são incompatíveis com o ego consciente e a persona”. Ela não é experimentada pelo ego. Sendo algo inconsciente, a sombra é projetada nos outros, e o ego tende a rejeitá-la, como se aquilo não fosse um aspecto da pessoa.
Paixão, sombra, persona, anima/animus
Retomando o fragmento de autoria desconhecida que deu origem a esse artigo: “O problema é que você se apaixonou pelas minhas flores, e não pelas minhas raízes... E quando o outono chegou você não soube o que fazer”, algumas questões se fazem presentes, quais sejam:
• Se a persona é o que decido mostrar ao mundo, e é formada de atitudes que se repetem frente às expectativas do mundo sobre mim, a paixão – que é sempre fruto de uma projeção do outro sobre mim – ignora minha persona?
• Sendo a sombra algo inconsciente e que também é projetado, e que por vezes se manifesta na relação com o outro, ela pode ser uma das responsáveis pelo “recolhimento” da projeção do outro sobre mim?
• É disso que se trata dizer que é através da relação com o outro que tomo consciência de minha totalidade?
• Sendo alvo da paixão de alguém (o que já pressupõe projeção), que interessa-se por aquilo que “ escolhi” mostrar (as flores e folhas) o socialmente aceito, minha persona - o que ocorre quando em contato com o meu eu profundo, minhas raízes, minha sombra, com aquilo que de fato sou? A relação ficaria inviabilizada?
Do que não se encerra...
Em contato com esses pontos da teoria junguiana, e sem pretensão de encerrar tão complexos questionamentos, seguem algumas considerações finais para o momento.
Não relacionar-se amorosamente pode significar um menor conhecimento a respeito de si mesmo, visto que é no encontro com o outro que vejo manifestos aspectos do meu inconsciente. E tendo consciência deles, posso vivenciar relações mais plenas.
A troca constante de paixões, tão presente no comportamento de alguns indivíduos, pode pressupor uma dificuldade em ir além das projeções, dificuldade de estar em contato com os próprios conteúdos internos.
Na medida em que me conheço mais, conheço também o outro. A consciência de suas próprias projeções pode trazer mais clareza sobre o relacionamento.
Relacionamentos são possibilidades de conhecermos nossas almas, e esse autoconhecimento pode favorecer a vivência do amor.
Referências Bibliográficas:
Stein, Murray. Jung: o mapa da alma: uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2006.
Franz, Marie- Louise. Reflexos da alma: projeção e recolhimento interior na Psicologia de C.G Jung. São Paulo: Cultrix,1988.
Sanford, Jonh A. Os parceiros invisíveis: o masculino e o feminino dentro de cada um de nós. São Paulo: Paulus, 1987.
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