sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

ACOLHENDO O SONHAR NA CLÍNICA JUNGUIANA




Por:
Ana Inez Carvalho



Dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos. Ele fala conosco através
dos sonhos. Jung, 1934.
Aprender com os sonhos!... Talvez este tenha sido o primeiro movimento de minha psique em direção ao tema há cerca de 40 anos, quando ainda estudante de psicologia, deparei-me com o título A Linguagem Esquecida uma introdução ao entendimento dos Sonhos,Contos de Fadas e Mitos, de Erich Fromm. Vale registrar que se hoje pouco se fala em Jung na formação dos psicólogos, imagine então naquela época.... E, ainda que o livro tenha ido para a estante, ao entrar em contato com seu conteúdo passei a estar mais atenta ao que sonhava, a fazer registros de sonhos, a perceber a correlação com fatos e vivências. Nestes anos vieram formações, especializações, workshops de imersão, dando-me oportunidade de estudá-los um pouco mais e de trabalhar com eles na clínica. Agora, quando aqui me proponho a compartilhar um pouco deste caminho de aprendizado, é novamente este mesmo livro que me cai às mãos, que surge junto a outros que se reuniram ao longo dos anos. Ele, que resistiu bravamente às diversas investidas de doações e de inúmeras mudanças, se manteve junto a mim, como que para marcar algo fundamental e que não devia ser esquecido: os sonhos, assim como outras manifestações psíquicas, oferecem um caminho pelo qual podemos estabelecer uma comunicação com este lado noturno, em geral desconhecido, mas não menos vivo e atuante em nossas vidas e que expressa afetos, conflitos, anseios e sentimentos mais profundos de nossa alma.


Considerando que os sonhos apresentam enorme riqueza de possibilidades criativas contidas no inconsciente e quando aprendemos a entendê-los, com a ajuda dos símbolos, em razão de sua linguagem não ser a usual, e a relacioná-los com aspectos de nossa vida em estado de vigília, podemos nos harmonizar com um processo profundo que orienta e sintoniza possíveis caminhos. Nas palavras de Jung “... foi a experiência analítica que descobriu, de modo cada vez mais claro, as influências do inconsciente sobre a vida consciente da alma influências cuja exigência e significado a experiência havia ignorado até aqui. (...) Neste caso, a orientação ativa para um fim e uma intenção seria um privilégio não só da consciência, mas também do inconsciente, de tal modo que este seria capaz, tanto quanto a consciência, de assumir uma direção orientada para uma finalidade.(Jung, O.C. Vol VIII/2, § 491). Ao sonhar lidamos com passado,presente e futuro e seus possíveis significados.

No trabalho de acolher e compreender um sonho, de lidar com esta matéria prima, uma regra fundamental necessita ser observada: “... quando alguém me conta um sonho e pede a minha opinião digo a mim mesmo, antes de mais nada: Não tenho a mínima ideia do que este sonho quer significar’.” Após esta constatação posso me entregar ao trabalho da análise propriamente dita do sonho.(JUNG, O.C. Vol VIII/2, § 533). Pois na clínica o sonho é do sonhador. É único e específico à sua psique e como tal descreve a situação atual do sonhador: é um autorretrato espontâneo; uma imagem simbólica da atual situação do inconsciente.
Conforme Jung esta regra de isenção exige do analista um sólido e cuidadoso preparo em sua postura para tal: renunciando a qualquer ideia pré-concebida para com o que se apresenta, assim como humildade em confessar sua ignorância diante de cada novo sonho. Neste preparo continuado e a ser observado a cada momento do trabalho, são ainda requeridos empatia psicológica, capacidade de combinação, penetração intuitiva, conhecimento do mundo e dos homens e, sobretudo um saber específico que se apoia ao mesmo tempo em conhecimentos extensos e uma certa intelligence du coeur. Ressalta que não é preciso um sexto sentido para entender os sonhos, mas exige-se algo mais do que esquemas vazios, como os que se encontram nas coleções vulgares de sonhos ou aqueles que se desenvolvem sob a influência de ideias preconcebidas. (O.C.Vol.VIII/2, §543).
Lembro que nesta época do pensar de Jung nem havia ainda o Google!




Para o trabalho de análise do processo onírico Jung nos orientou com a estrutura dos sonhos, semelhante ao drama:
Exposição: Indica o lugar da ação, os personagens que nela atuam e frequentemente a situação inicial;
Desenvolvimento da ação: como o ego onírico lida com a situação (Atua? Assiste a cena?);
Peripécia ou culminação: De repente sou eu, estranhamento, não consigo mais controlar...

Solução (lysis): houve um desfecho? A situação ficou em aberto, em que cena o sonhador acorda? O conflito ficou em aberto ou é apresentado uma solução? Nem todos os sonhos nos oferecem uma lysis. Por exemplo nos pesadelos, a situação que produz tensão se desenvolve e cria
cada vez maior ansiedade a ponto de despertarmos, em geral tensos e aflitos.
Conforme os princípios junguianos em qualquer circunstância é possível perguntar-se "por quê?" e "para que?", pois toda estrutura orgânica é constituída de um complexo sistema de funções com finalidade bem definida e cada uma delas pode decompor-se numa série de fatos individuais, orientada para uma finalidade precisa . Isso nos leva às questões: qual é o significado deste sonho? Ele é um símbolo de quê? Que atitude consciente unilateral este sonho está tentando compensar? Para que tive este sonho? Em que ponto da minha vida estou fazendo isso?
Os sonhos comportam-se como compensações da situação da consciência em determinado momento. Seja numa função prospectiva: como um plano traçado antecipadamente, capaz de imprimir à consciência uma orientação totalmente diferente e bem melhor que a anterior. Ou uma função redutora: para minar uma posição excessivamente elevada, lembrando ao indivíduo a insignificância do ser humano. (O.C., Vol VIII/2, § 495 e 496).

O sonho proporciona à consciência o material inconsciente constelado para este fim e a meta da análise de um sonho é compreender o seu significado simbólico e as suas raízes arquetípicas. É um processo que não pode ser unilateral, mas estabelecido por um consenso que seja fruto de analista e analisando.
A primeira fase do trabalho de análise demanda ouvidos acolhedores e atentos à escuta do material que chega, percebendo-se a entonação, as emoções e expressões corporais. Se contado pelo sonhador, deve-se orientar para que seja na primeira pessoa e no tempo presente, como se lá estivesse. Daí a relevância de registros escritos, gravados, qualquer fragmento de lembrança que se recorde, pois assim estamos sinalizando para o inconsciente que damos importância ao sonhar, o que traz sutis e significativas mudanças, o que tem sido relatado por sonhadores que ao fazer registros perceberam que a produção onírica se tornou mais intensa, ou mais clara.


Lembrar-se dos sonhos é uma dificuldade que alguns enfrentam. Então uma atitude acolhedora, assim como quando chamamos um gatinho para junto de nós, delicadamente... costuma ajudar bastante. Também dedicar atenção ao processo do despertar, do sair da cama e iniciar mais um dia, assim como práticas introspectivas como meditação, exercícios de silêncio, caminhadas que proporcionem conexão com o interior, me têm sido relatadas
como facilitadoras do processo de recordar.



Contar em voz alta proporciona que o sonhador se aproprie de seu sonho: contar e acolher, para aprender a digerir o que chega. Captar a ideia básica, o tema. Daí o movimento de circum-ambulação em torno do tema ou da imagem, dele se aproximando mediante amplificações cada vez mais nítidas e vastas. Passear em volta deles ou, no dizer de Hilman tornar-se amigo de seu sonho. Isso me faz pensar em que? Como me senti no sonho? É assim mesmo que me sinto?


O exercício da imaginação ativa, diálogo estabelecido com as imagens oníricas objetivadas, como mandalas, desenhos livres, conexões corporais... nos permitem voltar ao mesmo espaço com perspectiva, profundidade e dinâmica. Buscar sentir a pulsação do sonho (ou da imagem): ele está vivo? O que flui? Tem direção? Isso proporciona à pessoa aproximar e focalizar o sonho com maior nitidez, fazendo um inventário de suas características, buscando delinear seus contornos e perceber o relacionamento intrínseco aos seus elementos. Importante ressaltar que na amplificação de ambos as associações pessoais do sonhador devem ser mais importantes que as culturais ou arquetípicas e a análise de um sonho jamais poderá ter um caráter definitivo; ao contrário, são fatos vivos que mostram constantemente novos aspectos.
O sonho ampliado e compreendido deve ser firmemente colocado na vida da pessoa. Talvez esta seja a função mais nobre do sonhar: trazer para o presente, para o que ocorre agora. Aprender a
receber dele o que nos dá. Receber e honrar!
Ao finalizar esta partilha, posso perceber que a terra fértil para a semente deste trabalho Acolhendo o Sonhar na Clínica Junguiana” conseguir brotar e desenvolver-se foi e tem sido estudar e vivenciar a prática dos princípios da Psicologia Junguiana, o que busco honrar pelo do muito que tenho recebido. Assim, como diz o poeta Drumond Amar se aprende amando, para mim Sonhar se aprende sonhando e Acolhendo o sonhar aprendo a
CRESCER!
Referências
Ana Inêz Vargas de Carvalho
Fromm, E. (1983). A linguagem esquecida uma introdução ao entendimento dos sonhos, contos de fadas e mitos. Octávio Alves Velho (Trad.). 8a. Ed. Rio de Janeiro: Zahar.
Gallbach, M. R. (2000). Aprendendo com os sonhos. Pe.Ivo Storniolo (Rev.). São Paulo: Paulus.
Jung, C.G. (2013). A natureza da psique. In Obras Completas de C.G. Jung (Vol 8/2). Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1928)
Sanford, J. A. (1988). Os sonhos e a cura da alma. José Wilson de Andrade (Trad.). 4a. Ed. São Paulo: Paulus
Whitmont, E. C. e Perera, S.B. (1995). Sonhos um portal para a fonte. Maria Sílvia Mourão Netto (Trad.). São Paulo: Summus.

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