sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

A arte/expressão criativa como o “fio de Ariadne” da loucura.



Nome da Aluna: Carolina de Souza Leal
Nome da Tutora: Maria Elci Spaccaquerche

Entrada/Saída do Pavilhão Ulisses Viana, onde viveu por mais de 20 anos Arthur Bispo do Rosário. Colônia Juliano Moreira/RJ. Fotografia de Carolina Leal/outubro de 2016.

Apresentação

Em outubro de 2016, realizei uma viagem ao Rio de Janeiro. Diferentemente da maioria dos turistas que visitam a “cidade maravilhosa”, tracei uma rota diferente. Encantada pelo trabalho de Nise da Silveira e tomada por profunda admiração pelas obras de Arthur Bispo do Rosário, decidi visitar os dois hospitais psiquiátricos : Hospital Pedro II, que abriga o Museu de Imagens do Inconsciente e a Colônia Juliano Moreira, onde se pode visitar muitas obras de Arthur Bispo.

A fotografia presente na capa foi a grande inspiração para escrever esse artigo. Adentrar no pavilhão onde viveu Arthur Bispo do Rosário, sentir na alma toda a energia de um lugar que representou tanto sofrimento a outros seres humanos e deparar-me com esse fio azul na porta de saída (intervenção de uma artista plástica), me fez refletir sobre a arte e a expressão criativa como esse fio condutor, capaz de promover a comunicação entre o sujeito socialmente denominado louco e o mundo.

Feita esse contextualização, o que se pretende a seguir é articular a importância dos mitos, da produção e expressão artística e a psicologia analítica. Para tanto, partiremos do mito de Teseu, escritos de Nise da Silveira, Joseph Campbell, Jung, dentre outros.

1 – Para chegarmos - e sairmos - do Labirinto.




O psiquiatra e analista junguiano Carlos Byington faz uma interessante contribuição no prefácio da obra “Mitologia Grega” de Junito Brandão. Ele diz:

“Através do conceito de arquétipo, C.G Jung abriu para a Psicologia a possibilidade de perceber nos mitos diferentes caminhos simbólicos para a formação da Consciência Coletiva. Nesse sentido, todos os símbolos existentes numa cultura e atuantes nas suas instituições são marcos do grande caminho da humanidade das trevas para a luz, do inconsciente para o consciente. (...) Com o recurso da imagem e da fantasia, os mitos abrem para a Consciência o acesso direto ao Inconsciente Coletivo. Até mesmo os mitos mais hediondos e cruéis são da maior utilidade, pois nos ensinam através da tragédia os grandes perigos do processo existencial. Todavia, os arquétipos são ainda mais do que a matriz que forma os símbolos para estruturar a Consciência. Eles são também a fonte que os realimenta. Por isso, os mitos, além de gerarem padrões de comportamento humano, para vivermos criativamente, permanecem através da história como marcos referenciais através dos quais a Consciência pode voltar às raízes para se revigorar.”(Mitologia grega, vol.I, pág.9).

Esse pequeno fragmento coaduna com a concepção de mitos apresentada também por Campbell, que os entendia como “pistas” que buscamos para melhor compreendermos a experiência de estarmos vivos.

Para Jung, os mitos condensariam “experiências vividas repetidamente durante milênios, experiências típicas pelas quais passaram (e ainda passam) os seres humanos”. (SILVEIRA,1997). E ainda, seriam fenômenos psíquicos capazes de revelar a natureza da psique, cujos conteúdos poderiam surgir em sonhos e fantasias do sujeito, permitindo tecer inclusive considerações a respeito de sua condição psíquica.

Dito isso e sem a pretensão de esgotar o tema, fica explícita a importância do estudo da mitologia para a psicologia analítica e consequentemente para o desenvolvimento do trabalho junto aos clientes, considerando-se que os mitos transcendem a temporalidade, e conhecê-los pode nos permitir um encontro genuíno com nossos clientes, captando aspectos submersos em suas vivências.

1.1 O mito de Teseu – O fio de Ariadne como a salvação do herói.


De maneira bem sucinta sem entretanto suprimir aspectos elementares do mito de Teseu, vamos contá-lo a seguir. Antes de descrevê-lo porém, torna-se fundamental retomarmos a obra de Joseph Campbell, “O herói de mil faces”, para que se faça a base do que aprofundaremos nesse artigo.

Nessa obra Campbell, de maneira pungente e por que não dizer poética, fala da corajosa empreitada a que alguns de nós nos submetemos na tortuosa experiência do viver. E essa empreitada seria nada menos que o mergulho em nosso eu, enfrentando nossos monstros, submergindo e emergindo diferentes a cada desafio.

“É próprio da mitologia, assim como do conto de fadas, revelar os perigos e técnicas específicos do sombrio caminho interior que leva da tragédia à comédia. Por conseguinte, os incidentes são fantásticos e irreais: representam triunfos de natureza psicológica e não de natureza física.(...) Por vezes, a passagem do herói mitológico pode ser por cima da terra; fundamentalmente, é uma passagem para dentro – para as camadas profundas em que são superadas obscuras resistências e onde forças esquecidas, há muito perdidas, são revitalizadas, a fim de que se tornem disponíveis para a tarefa de transfiguração do mundo”. (O Herói de Mil faces, pag. 35).

Assim sucedeu a Teseu, um dos maiores heróis da Grécia. Filho do rei e da rainha de Atenas - Egeu e Etra - Teseu decidiu colocar fim ao sacrifício exigido ao seu povo pelo rei Minos (Rei de Creta) – a entrega anual de 7 jovens do sexo masculino e 7 jovens do sexo feminino para alimentarem o Minotauro.

Minotauro, o homem com cabeça de touro, era fruto da paixão de Pasífae (esposa do rei Minos) por um touro. Uma paixão atípica, oriunda de um castigo dos deuses. O rebento era motivo de vergonha para o rei Minos e portanto viveu toda sua vida preso num labirinto, devorando jovens que dali não conseguiam escapar.

Se pensarmos na origem da palavra paixão – pathos – que é uma palavra grega, que relaciona-se a excesso, a algo por vezes doentio, sofrimento, assujeitamento – vemos que a própria concepção do Minotauro já seria fruto do incontrolável no ser humano. Mas, voltando ao mito...

Teseu então encarou esse desafio, e tendo despertado o amor de Ariadne, a filha do rei Minos, recebeu dela a contribuição fundamental para que saísse vivo do labirinto. Um fio que o conduziria à saída, que marcaria o caminho de volta, depois de encontrar e matar o monstro. E assim o fez.

Por hora ficaremos aqui, não aprofundando em toda a simbologia envolvida nesse mito. Mais adiante, pegaremos alguns aspectos e que seja uma boa costura...

2. “A obra de arte e o artista” (Silveira, 1997).

Para adentrarmos um pouco no campo da arte e principalmente da expressão artística, a base para esse artigo será o capítulo VI – Relação da psicologia analítica com a obra de arte poética – das obras completas de Jung, vol.15 “O espírito na arte e na ciência”.

Nesse capítulo, Jung deixa claro que a psicologia analítica não pretende analisar a obra em si, mas os processos criativos e a estrutura da produção artística.

De acordo com Jung, há duas maneiras divergentes da origem de uma obra de arte. A primeira seria fruto do gênero introvertido, onde o criador teria consciência da finalidade de sua obra, certa intencionalidade. (Porque mesmo no que aparenta ser intencional pode haver algo inconsciente).

A segunda seria oriunda do gênero extrovertido.

“O gênero extrovertido é caracterizado pela subordinação do sujeito às solicitações do objeto. (...) A análise prática dos artistas mostra sempre quão forte é o impulso criativo que brota do inconsciente, e também quão caprichoso e arbitrário.(...)A obra inédita na alma do artista é uma força da natureza que se impõe, ou com tirânica violência ou com aquela astúcia sutil da finalidade natural, sem se incomodar com o bem-estar pessoal do ser humano que é veículo da criatividade.(...)A psicologia analítica denomina isto complexo autônomo. (...)trata-se de um acontecimento da natureza inconsciente que se impõe sem a participação da consciência humana e algumas vezes até contra ela, teimando em impor sua forma e efeito”. (Jung, pag.75 e 76).

E, ainda, Jung citado por Nise da Silveira “o processo criador, na medida em que podemos acompanhar, consiste numa ativação inconsciente do arquétipo, no seu desenvolvimento e sua tomada de forma até a realização da obra perfeita”.

Pensando no segundo modo do qual se originaria a obra de arte, é possível perceber o “descontrole” do sujeito sobre o surgimento de sua obra. O quão intensa é a emergência de conteúdos internos, que uma vez trazidos à consciência – mas nunca em sua totalidade – necessitam encontrar uma espécie de tradução, que seria a própria obra.

Nesse ponto, não podemos nos furtar de enxergar certa proximidade entre o estado de “paixão” e seus “excessos”, à força do que Jung denominou “complexo criativo” sobre o sujeito. Seria um momento de “loucura”? Uma busca por sanidade?

3. A arte e a expressão criativa como o “fio de Ariadne” da loucura.


Seria impossível e por que não dizer injusto, falar desses temas sem considerar o precioso trabalho de Nise da Silveira juntos aos usuários de saúde mental, que brilhantemente chamava clientes.

É dispensável, nesse momento, buscar grandes obras para dizermos quem eram e como foram ( e ainda são) tratados os chamados “loucos” em nossa sociedade. Ainda assim, vamos nos apropriar de uma breve citação escrita no prefácio do livro de Daniela Arbex, “O holocausto brasileiro”. O livro traz histórias reais dos internos do maior hospício do Brasil, localizado em Barbacena – mas poderiam ser histórias de todos os outros hospícios.

“Neste livro, Daniela Arbex devolve nome, história e identidade àqueles que, até então, eram registrados como “Ignorados de Tal”. Eram um não ser.(...) Quando elas chegaram ao Colônia, suas cabeças forma raspadas, e as roupas arrancadas. Perderam o nome, foram rebatizadas pelos funcionários, começaram e terminaram ali. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder”. (pag.13 e 14)

Despidos de identidade, desumanizados (Minotauros?) isolados num labirinto. Apartados da sociedade. Incomunicáveis. Inacessíveis.

Preocupada e desde sempre descontente com os rumos da psiquiatria no Brasil, Nise da Silveira encontrou na teoria junguiana o suporte necessário para a sustentação científica de outras formas terapêuticas, denominadas por ela própria, terapêutica ocupacional.

Na “Casa das Palmeiras” , fundada em 1956, a psiquiatra, utilizava-se de atividades que envolviam em essência a função criadora, que segundo ela própria,

“está mais ou menos adormecida em todo indivíduo. A criatividade é o catalisador por excelência das aproximações de opostos. Por seu intermédio, sensações, emoções, pensamentos são levados a reconhecer-se, a associar-se. A tarefa principal da equipe técnica da “Casa das Palmeiras” é permanecer atenta ao desdobramento fugidio dos processos psíquicos que acontecem no mundo interno dos clientes através das inúmeras modalidades de expressão. E não menos atenta às pontes que ele lança ao mundo externo, a fim de dar-lhes apoio no momento oportuno”. P.21 nise/imagens

O principal objetivo dessas atividades era cortar o ciclo de internações e reinternações dos clientes, mas sem dúvidas, incontáveis eram os benefícios. Tinta, argila, madeira, tecidos...Todos esses materiais eram utilizados para “dar voz” aos clientes. Todos esses materiais deixados à disposição do inconsciente desses sujeitos, resultaram, em muitos casos, em verdadeiras obras de arte. Desencadearam processos de “cura”. Cura da perspectiva de voltar a interagir, de se ver nas imagens. De ser visto. De sentir-se humano.

4 . Costurando tudo...


Retomando a foto inspiradora de um turbilhão de reflexões, vamos tentando costurar tudo que aqui foi apresentado. Teseu encarou sua jornada do herói e em parte dela, foi se haver com o Minotauro. Corpo de homem, cabeça de touro. Humano no corpo, animal na mente, tomado por instintos e pela impulsividade, pelos excessos.

Encarou a entrada no labirinto, mas para tanto, contou com o precioso fio que o traria de volta, de modo a não perder-se nesse mundo, nesse lócus de não razão. Ficou cara a cara e enfrentou o “seu monstro”, mas conseguiu sair.

Ao fim da visita aos hospícios, conhecendo e mergulhando nas histórias que migravam do horror à beleza, encontrar esse fio no pavilhão onde viveu Arthur Bispo, fez emergir, como se num “insight”, um processo curioso e criativo, que não sei se bem expresso em palavras nesse artigo.

Impossível não pensar nos horrores ali vividos. Ao mesmo tempo, impossível não pensar que em meio ao caos, a expressão criativa é capaz de salvar e tornar suportáveis condições muito adversas. Por essa razão, pensar no processo criativo e na arte como “fio de Ariadne”da loucura, pareceu-me uma bela ideia e uma bela imagem.

Referências Bibliográficas (formatar).
Jung, Vida e Obra. Nise, 1997
Holocausto Brasileiro. Daniela Arbex , 2013.
Jung Obra Completa, v.15. O espírito na arte e na ciência. O herói de mil faces. Cap. I Joseph Campbell

O poder do Mito . cap.V A saga do Herói.
O mundo das Imagens. Nise da Silveira.
Arthur Bispo do Rosário. Arte Além da Loucura.

Instituto Junguiano de Brasília – IJBsb

Curso de Formação em Psicologia Analítica – turma III

Título do Trabalho: A arte/expressão criativa como o “fio de Ariadne” da loucura.

Nome da Aluna: Carolina de Souza Leal Nome da Tutora: Maria Elci Spaccaquerche

Brasília, janeiro de 2017.

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