segunda-feira, 27 de novembro de 2017

UNUS MUNDUS – A REALIDADE EM PERSPECTIVA E A CLÍNICA JUNGUIANA



Por:Alcione Nascimento Tinôco
Tutora: Renata Whitaker
Brasília Julho, 2017

Resumo
Este artigo questiona a concepção de realidade adotada pelo senso comum e pelo modelo tradicional de ciência. Refere-se à sincronicidade como um ponto de intersecção entre a Psicologia Analítica e a Física e como campo de evidências de camadas mais profundas de realidade. Trata-se de um fenômeno definido por Carl Gustav Jung como coincidência significativa de eventos psíquicos e materiais entre os quais não se identifica relação causal. As atuais contribuições da Física acerca do modelo de realidade corroboram resultados da observação de dados empíricos por Jung e de estudos realizados por ele e pelo físico Wolfgang Pauli.

UNUS MUNDUS A REALIDADE EM PERSPECTIVA E A CLÍNICA JUNGUIANA

Comumente se fala da realidade como se houvesse um consenso quanto à sua definição. Busca-se não perder o contato com o mundo real, valoriza-se a razão, a capacidade do indivíduo de se colocar em relação com o contexto que o cerca e de atuar nesse contexto de forma lúcida, dentro do tempo e do espaço caracterizados por sequência linear e continuidade. Para isso, fortalece-se a consciência e, se algo sinaliza sair do modelo de comportamento ajustado, recorre-se a tratamentos. Assim, separa-se o mundo da imaginação e da subjetividade do mundo de realidade material e desconfia-se do que não seja objeto de consenso interpessoal ou não esteja de acordo com o modelo hegemônico de ciência.
Há, entretanto, na psicologia analítica, conceitos que subvertem a concepção ordinária de realidade, mas que se sustentam em teorias da física cujas contribuições atualmente ganham cada vez mais evidência no meio científico.

O foco de interesse da psicologia junguiana é a psique, entendida como “... a totalidade dos processos psíquicos, tanto conscientes como inconscientes” (Jung, citado por Penna, 2013, p. 146). Penna (2013, p. 145) afirma que a realidade psíquica, na perspectiva junguiana, sintetiza “a realidade física, material e corpórea com a realidade espiritual, imaterial e abstrata. ” Logo, o psíquico é tão real quanto o físico e os dois aproximam-se para formar uma unidade.
Assim pensavam os alquimistas medievais cujo texto sagrado intitulado “A tábua de esmeralda de Hermes” preconizava que “Aquilo que está embaixo é igual ao que está em cima e aquilo que está em cima é igual ao que está embaixo, para realizar os milagres de uma só coisa. ” (Edinger, 2006, p. 23)
A ideia de totalidade está presente na obra junguiana com várias funções. Uma delas é associada ao conceito de unus mundus, herança da filosofia medieval. Assim, a partir desse conceito, a cosmovisão junguiana apoia-se no ideário romântico para conciliar “o subjacente e o manifesto”
(p.139) e vai além da causalidade, considerando a realidade como um todo complexo e articulado de relações causais e não causais. (Penna, 2013)



É nesse complexo de relações não causais, de natureza simbólica e nas quais predomina a associação de significado, que ocorre o fenômeno da sincronicidade. Trata-se da relação entre dois eventos, um inserido no espaço e no tempo e o outro pertencente à dimensão simbólica. Esses eventos relacionam-se significativamente e fazem sentido para o indivíduo que os percebe, mas não têm relação causal. (Penna, 2013; Raff, 2002)

A ideia de que sob a aparência física das coisas existe um significado, uma dimensão simbólica, era defendida pelos alquimistas a ponto de Paracelso haver considerado como fantasia a atitude de acreditar na realidade física. Para além dessa aparência encontra-se o significado, a possibilidade de se compreender as situações imediatas da vida relacionando-se os níveis de realidade. É por isso que a imaginação ativa, método criado por Jung, pode levar tanto a uma profunda compreensão de fatos da vida material, a insights que produzem uma transformação psíquica, como até mesmo a uma modificação da situação, como a cura de um sintoma físico, por exemplo. (Penna, 2013; Raff, 2002)

Essas afirmativas podem conduzir ao questionamento: como é possível que se estabeleça relação tão significativa entre psique e mundo material a ponto de parecer que ocorre uma passagem da dimensão simbólica, da realidade psíquica, para a realidade material?
Ao ocupar-se da relação entre realidade psíquica e realidade material, Jung (1928/2013) concluiu que existe a possibilidade de que psique e matéria sejam “dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa” e que os fenômenos de sincronicidade indicam isso. Estabeleceu uma analogia entre o espectro de cores que variam do vermelho ao ultravioleta, concluindo que o dinamismo do instinto localiza-se no infravermelho e que a imagem do instinto (o arquétipo) localiza- se no ponto ultravioleta. O instinto expressa-se, nesse espectro, da seguinte forma: de um lado, como dinamismo fisiológico. De outro, como imagens pelas quais ele penetra na consciência e produz efeitos
numinosos. Essas imagens são os arquétipos. Enquanto a psique biológica instintiva (no infravermelho psíquico) se expressa nos processos biológicos do organismo, o arquétipo (no ultravioleta) encontra-se em um ponto que não pode ser considerado fisiológico, mas que também não pode ser considerado inteiramente psíquico, embora se expresse psiquicamente. Assim, o arquétipo tem natureza psicóide, ou seja, ele situa-se numa área de passagem entre psique e matéria.
Assim, Jung (1928/2013) explica que os arquétipos constituem “um fator psíquico partilhado por toda a humanidade” (p. 111). Como são tipos arcaicos de comportamento que originam e regulam os conteúdos da consciência, os arquétipos atuam como instintos. Mas arquétipo e instinto são opostos. Também, quando surgem, provocam um efeito intenso que pode resultar em cura ou em destruição. Muitas vezes, ao aparecerem em sonhos e fantasias, são percebidos como espíritos, como fantasmas, e exercem um efeito tão numinoso que pode ser arrebatador para o indivíduo, levando-o a agir movido por intenso afeto. Em si, o arquétipo não tem forma. Entretanto, torna-se consciente ao ser representado. Mas de qualquer forma, a sua natureza transcendente faz com que a imagem que o representa não consiga expressar, apreender tudo de sua essência.

E os arquétipos são formas psíquicas preexistentes e sem conteúdo que se constituíram em decorrência de incontáveis repetições de experiências da humanidade, podendo tornar-se conscientes de forma secundária e dar forma aos conteúdos da consciência. São ativados por situações típicas da vida, gerando comportamentos que escapam ao controle intencional da razão humana. (Jung, 1959)
Segundo Raff (2002, p. 89) as experiências psicoidais produzem um “profundo impacto... sobre a mente e o corpo, e a sensação de que a figura vem de lugar situado além da psique. Essa figura é um arquétipo e o lugar de onde se originam é a dimensão psicoidal. Embora não sejam parte da psique humana, essas figuras têm características físicas e psíquicas, mas estão em um terceiro estado que é aquele dos corpos sutis.
Assim, tanto os sintomas psicossomáticos quanto os fenômenos parapsicológicos derivam da área psicóide de onde sai a informação que é psiquizada, ou seja, que de incognoscível passa a inconsciente e depois chega à consciência. (Stein, 2006)


A demarcação de limites claros entre o que é físico e o que é psíquico não é tarefa fácil, uma vez que a maior parte da interação entre essas duas instâncias encontra-se profundamente enraizada no inconsciente. Elas, em muitos aspectos, independem uma da outra, mas entre os extremos de uma linha contínua imaginária, suas áreas se interpenetram e atingem a faixa em que se encontra o que não é psíquico e nem físico e que Jung, apropriando-se de um termo utilizado por Bleuler, denominou psicóide. (Stein, 2006)
Ao explicar o pensamento de Jung sobre o psicóide, Stein (2006, pp. 95-96) nos convida a imaginar “... uma linha que percorre a psique e liga o instinto e o espírito em cada ponta. ” Essa linha permite a transmissão de dados por meio da área psicóide “para o inconsciente coletivo e depois para o pessoal. Daí, esses conteúdos percorrem seu caminho até a consciência. ” E completa, afirmando que “As percepções instintivas e as representações arquetípicas são os dados da experiência psíquica real, não os instintos e os arquétipos em si mesmos. ” Assim, não há possibilidade de o indivíduo experimentar diretamente nenhum dos dois, uma vez que nenhum deles é psíquico.
E a condição psicóide dos arquétipos confere-lhes a qualidade de transferibilidade que Stein (2006) explicou como a possibilidade de emergir na consciência tanto a partir da própria psique quanto a partir do exterior, do mundo material. Isso ocorre porque os arquétipos não estão restritos a nenhuma dessas duas instâncias. E, ainda, quando surgem ao mesmo tempo no mundo psíquico e no mundo material, esse fenômeno é qualificado como sincronístico.
Ao explicar o estado psíquico em que ocorrem eventos sincronísticos e fenômenos de percepção extrassensorial (ESP), Jung (1950/2014) afirmou que o estado emocional do indivíduo envolvido promove uma modificação na consciência, rebaixando o nível mental. Nesse estado, a
consciência se estreita e o inconsciente se fortalece e se eleva. Então, cria-se uma espécie de declive em que impulsos e conteúdos instintivos do inconsciente afluem para a consciência.
Jung (1950/2014) também esclarece que sincronicidade ocorre quando “Um conteúdo inesperado, que está ligado direta ou indiretamente a um acontecimento objetivo exterior, coincide com o estado psíquico ordinário. ” (p. 39). Assim, por exemplo, uma mulher sonha que alguém lhe diz que uma de duas borboletas idênticas deverá morrer e, no dia seguinte, ao atender a um convite de uma amiga e entrar numa sala, depara-se com dois quadros de borboletas idênticas colocadas lado a lado na parede. O significado do evento sincronístico parecia apontar para a necessidade de união de polaridades.
E justamente o significado, ao lado da simultaneidade, caracteriza o fenômeno da sincronicidade que não guarda em si uma relação causal entre os eventos ocorridos. A ideia de relação causal foi excluída porque caso se recorra a uma explicação causal de cunho transcendental, é preciso lembrar que um fenômeno transcendental não pode ser demonstrado como um fenômeno material em laboratório, o que levou Jung a afirmar que a sincronicidade é um fenômeno acausal. (Jung, 1950/2014)


Mesmo ameaçada por acusações de pouca cientificidade, a tese junguiana foi postulada clara e corajosamente: existe um continuum entre a psique e o mundo e estes “interagem intimamente e se refletem reciprocamente”. (Stein, 2006, p. 178)
A visão de mundo decorrente da ideia de sincronicidade e da natureza psicoidal dos arquétipos, portanto, é aquela na qual se “decompõe a dicotomia sujeito-objeto”. Trata-se de uma visão sistêmica na qual o mundo e o ser humano compõem uma totalidade crescentemente complexa em que, além dos fenômenos causais, existem fenômenos acausais nos quais eventos ocorridos no espaço e no tempo podem relacionar-se significativamente com eventos de natureza simbólica sem que um tenha produzido o outro. (Stein, 2006, p.176; Penna, 2013) 

Jung arriscou-se a perder prestígio profissional na comunidade científica ao falar de algo que não se resume ao psíquico e nem ao material e que produz no ser humano efeitos misteriosos, numinosos. Seu compromisso com a realidade do que havia percebido manteve-o fiel ao propósito de publicar o resultado de suas reflexões e descobertas, mesmo sendo rotulado com escárnio como ocultista e místico. Para isso, precisou nomear os fenômenos e, ao fazê-lo, utilizou termos desconhecidos ou pouco aceitos em círculos científicos. Entretanto, vislumbrou na Física a possibilidade de explicação do fenômeno sincronístico. Além de vários almoços com Albert Einstein nos quais a teoria da relatividade era o tema da conversação, ele e o físico Wolfgang Pauli iniciaram uma colaboração que seria profícua se não fosse interrompida pela morte de Pauli. (Stein, 2006)
Muitas construções teóricas da Física emergentes na época também tinham, como as ideias de Jung sobre sincronicidade, um modelo não causal. A fissão radioativa era um exemplo. Além disso, Pauli estudou as ideias de Kepler e nelas descobriu arquétipos. Jung e Pauli concordavam que a visão da física clássica sobre tempo, espaço e causalidade poderia se transformar com o acréscimo do quarto termo: sincronicidade. Ao contrário da ideia de causalidade como conexão constante no contínuo espaço-tempo, Jung e Pauli propunham a ideia de uma conexão inconstante por meio da contingência e do significado. Ao contrário de Einstein, que considerou que a estrutura do espaço- tempo é contínua, Jung e Pauli pensavam que também existem fenômenos acausais que significam inconstância, descontinuidade, apesar de haver equivalência. (Hyde &b Mc-Guinness, 2012)


Wolfgang Pauli

Jung (citado por Lachman, 2012, p. 208) concluiu que ...ou há processos físicos que causam acontecimentos psíquicos ou há uma psique pré-existente que organiza a matéria. ” As “coincidências significativas” são evidências desse pensamento.
A aproximação entre a teoria junguiana e as ideias da física ganham atualmente novas contribuições que reafirmam o conceito de sincronicidade: o físico irlandês John S. Bell criou um teorema (Teorema de Bell), confirmado por experimento dos físicos David Bohm e Yakir Aharonov, que questiona o pressuposto de localidade valorizado pelo paradigma científico atualmente dominante. Este paradigma considera que:
“as causas de um evento qualquer têm de ser buscadas no local do evento ou em locais capazes de enviar uma informação física (por onda ou partículas) que precisa chegar ao local do evento antes de sua ocorrência.” (Rocha Filho, 2014)
Entretanto, o Teorema de Bell (ou Desigualdade de Bell) “...demonstrou que a natureza básica da realidade tem que ser não local” (Rocha Filho, 2014, p. 89), ou seja, que existe uma “ligação instantânea” entre pontos do espaço-tempo distantes entre si que não está sujeita à distância ou à quantidade de matéria que se interpõe entre esses dois pontos. Assim, a ideia de que os órgãos dos sentidos medeiam a consciência humana e a realidade passa a ser questionada e abre-se um campo de compreensão na física que permite supor a existência de uma memória da humanidade que pode ser a responsável não somente pela herança psicológica comum aos seres humanos mas que também inclua dados sobre todos os acontecimentos da existência do Universo. (Rocha Filho, 2014)

Essa “herança psicológica comum aos seres humanos” a que se refere Rocha Filho (2014, p. 89) é o inconsciente coletivo, conceito que Jung (1959/2014) afirmou ser tributário das contribuições teóricas de Lévy-Brühl (representações coletivas), Hubert e Mauss (categorias da imaginação) e Adolf Bastian (pensamentos elementares ou primordiais) e que disse ser uma parte da psique que difere da psique individual consciente, um segundo sistema psíquico em relação à consciência, de caráter coletivo, herdado pelo indivíduo e composto pelos arquétipos. É, portanto, de natureza psicoidal.
Os conceitos junguianos de inconsciente coletivo e sincronicidade ganham, dessa forma, confirmação científica e contribuem para a ampliação da ideia de realidade. A consciência é como uma onda que se eleva na totalidade do oceano. Ela se separa do todo apenas de forma aparente. E a realidade física é resultado da realidade psíquica, mais profunda.
Assim, a sincronicidade, conforme Rocha Filho (2014, p. 92), poder ser “um sintoma perceptível da estrutura mais profunda da realidade... em nada semelhante ao Universo composto por entidades independentes e separadas, da Física Clássica. ”.
Retorna-se, assim, com a ajuda da Física, à ideia de unus mundus tão cara aos alquimistas e filósofos medievais e utilizada por Jung para propor a ideia de mundo unificado, de mundo psíquico com o mesmo status conferido ao mundo material e este último como o cenário em que coincidências significativas ocorrem, acenando para a existência de outras instâncias de realidade.

REFERÊNCIAS
Edinger, E. F. Anatomia da psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves Trads. São Paulo: Cultrix, 2006.
Rocha Filho, J. B. da. Física e psicologia: as fronteiras do conhecimento científico: aproximando a física e a psicologia junguiana. 5 ed.rev.ampl. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.
Hyde, M. & Mc-Guinness, M. Entendendo Jung. Adriana de Oliveira trad.São Paulo, Leya, 2012
Jung, C. G. (2013). A natureza da psique. In Obras completas de C. G. Jung. (Vol 8/2). Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1928)
Jung, C. G. (2013). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. In Obras completas de C. G. Jung. (Vol. 9/1). Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1959)
Laxam G. Jung, o místico: as dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de C. G. Jung: uma nova biografia. (Mário Molina trad.). São Paulo: Cultrix, 2012
Penna, E. M. D. Epistemologia e método na obra de C. G. Jung. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2013.
Raff, J. Jung e a imaginação alquímica. Marcello Borges (Trad.) São Paulo: Mandarim, 2002. Stein, Murray. Jung: o mapa da alma. (Álvaro Carvalho trad.) São Paulo: Cultrix, 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário