quinta-feira, 25 de maio de 2017

O Processo de Individuação de Jenny Isaksson em Face a Face, o mais visceral dos filmes de Ingmar Bergman, o cineasta da alma humana. (Contém Spoilers)



Por:
Haroldo Michiles

Resumo: Este artigo pretende destacar um dos mais dramáticos personagens criados pela magia do cinema e pela cabeça do cineasta da alma humana (como é chamado o sueco Ingmar Bergman), a Dra. Jenny Isaksson, psiquiatra casada, que em meio a uma grave crise existencial, volta a casa em que viveu na infância com seus avós, e ao se sentir impossibilitada de conviver com suas visões e culpa assustadoras tenta o suicídio, revisitando os sonhos sua infância traumática e ao ver a morte face a face, passa, auxiliada por um terapeuta/amigo, por um processo catártico que a leva a se reorganizar internamente, indo do caos a um estágio que pode-se entender como o inicio de seu processo de individuação.

                                   Liv Ullmann e Bergman durante as filmagens de Face a Face.
Introdução
Face a Face, filme dos anos 70 do diretor sueco Ingmar Bergman, não é um filme qualquer. De todos os filmes desse extraordinário cineasta, talvez seja esse o mais visceral deles e, certamente, um dos poucos com um olhar tenuemente otimista, ao registrar a curva de vida da ambígua personagem central Jenny Isaksson, médica psiquiatra, que vai enfrentar a maior batalha interna que um ser humano pode ter: o confronto com seus traumas de criança (criada que foi pela avó autoritária em função da morte precoce dos pais), seus medos abissais da velhice e da morte, vivenciar o seu lado sombrio, e o embate com a gigantesca culpa que a persegue e que é materializada por uma velha senhora de negro, que sem uma palavra, a enfrenta olho no olho, desde uma das primeiras cenas, na casa dos avós. Culpa de que? Entre tantas, a de não ter atendido aos desmedidos anseios e expectativas desses avós que a criaram (e que não se importavam em trancá-la num armário escuro quando não atendia a essas cruéis expectativas). De, na infância, não ter se posicionado a favor do frágil pai alcoólatra que tanto amava, nos embates dele com a mãe e a já mencionada e arrogante avó, travestida de boa cuidadora. Culpa por não amar de fato sua filha adolescente. De trair o marido, de ter tido prazer numa tentativa de estupro, e mais...
Por circunstâncias profissionais, ela volta a casa desses avós para assumir temporariamente a direção de uma clínica, uma oportunidade única para o real confronto com o medo da morte e da velhice, e porque não, a partir de um ponto onde já não há mais retorno, se reorganizar internamente, se reinventar; dramática história essa, que poderá levá-la ao processo de individuação. Apesar de dizer que está sempre bem, ela deixa escapar que “quando se deixam as coisas como estão, elas ficam como estão”. E pouco a pouco os “esqueletos” de sua infância começam a sair do armário. Em grande parte do filme, Jenny e a figura quase onipresente da já citada senhora de negro que traduz a grande culpa da personagem, se medem num jogo de olhares (ameaçadores por parte da anciã) e de medo por parte do personagem central. Também, em uma das primeiras cenas, há imagens que ligam essa culpa ao desenho de um leão (não por acaso para Jung uma figura de poder), como também a imagem de uma flor de lótus, que nas diversas mitologias, representa o símbolo de transformação espiritual e metamorfose, desenho esse localizado num vitral pouco iluminado na escada dessa temível casa.
 Mas, o filme está apenas começando, e antes que a Dra. Isaksson (interpretada pela atriz sueca Liv Ullmann, que Bergman dizia ser seu stradivárius), se liberte desse sufocante casulo que é a sua angustiada vida (angustia essa metaforicamente também representada pela velha senhora e pela casa onde passou a sua infância), vai ter que ir vertiginosamente às profundezas de sua escuridão pessoal, passando por crises histéricas, depressivas e de insônia, que a levam a uma desesperada tentativa de suicídio, quando pelos sonhos (que são de grande importância neste filme), passa por um processo catártico de revisão e ressignificação de sua infância traumática, emergindo então com uma outra roupagem psíquica. Ao partir para o enfrentamento de seus temores, fantasmas, erros, sua sombra, e com a mão amiga de um médico (mix de amigo/namorado/ terapeuta), se reergue e sai em busca dessa coisa maior que rege todo ser humano, que é o Self e porque não, do seu processo de individuação.


Face a Face (capa)

A atriz Liv Ullmann (que Bergman dizia ser seu Stradivárius), no filme Face a Face pelo qual foi indicada ao Oscar em 1976.
 O fio condutor que antevê a sua crise pessoal e que a leva a já citada tentativa de suicídio, são seus sonhos, sempre eles... Vestida de vermelho, a criança que ela foi, percorre todos os espaços daquela aterradora casa, sem coragem de entrar no temido armário escuro (onde era trancada quando desobedecia a avó), o que de fato acontece no sonho final no leito do hospital, em que esse armário vira seu próprio caixão, com uma Jenny criança implorando aos gritos para não ser enterrada. Gritos esses em vão, pois pregos e martelo vedam seu esquife. Logo ela própria já adulta, ateia fogo ao seu ataúde, queimando o corpo da criança que ela foi. Fogo esse que não por acaso, também simboliza transformação, metamorfose e renascimento na alquimia, como também na velha lenda da Fênix, a águia que incendiada, renasce das cinzas.
Sobre esse lugar escuro, diz Jung na obra “Seminários sobre Sonhos de Crianças (p.104), que para todas as crianças o porão negro é um lugar sinistro. A consciência é frequentemente representada a partir da casa, e o porão é aquele lugar escuro onde perdemos a consciência, o lugar onde acontecem as coisas que mais tememos, aquilo que não conhecemos. A escuridão seria o lugar onde nos sentimos sozinhos, de onde vêm os sonhos ruins, onde o perigo nos ronda e, na fantasia de uma criança, esse espaço é onde acontecem fatos obscuros e misteriosos. A analogia entre o porão e o armário escuro onde Jenny foi trancada é clara.
Sobre o objetivo dos sonhos, diz ainda Jung na obra acima citada (p.18), que “o sonho representa a reação inconsciente frente à situação consciente. Uma determinada situação consciente é seguida por uma reação do inconsciente na forma de um sonho, trazendo conteúdos que - de modo complementar ou compensatório - apontam claramente para a impressão que se obteve durante o dia. Diz ainda que os sonhos representam uma determinada situação, que certamente é fruto do conflito entre consciência e inconsciência, em que essa inconsciência tem como objetivo modificar uma atitude consciente.

Face to Face (Face a Face)


Após o caos, a tempestade e a noite negra, Jenny volta talvez pela última vez àquela casa, encontra os avós frágeis e no embate final com a morte próxima, e agora, com aparente serenidade desce aquela mesma escada do inicio do filme na qual a velha senhora de negro (que como já dito representa a culpa), já não está mais lá. Apenas o vitral com a flor de lótus já aparece iluminado pela luz de um novo dia. Depois da desordem, talvez ela esteja pronta para essa odisseia que é a segunda metade da vida. E o que é a segunda metade da vida parar Jung senão o processo de individuação, de encontro com o Self?
Como diz Connie Zwig no artigo “O Feminino Consciente: Nascimento de um Novo Arquétipo,“ que integra a obra Espelhos do Self, “as mulheres são feitas, não nascem prontas. Sem terem atravessado as labaredas da individuação, algumas permanecem meninas. Despreocupadas e talvez descuidadas, ficam ainda atadas a seus ideais da infância, à promessa da perfeição, ao sonho do potencial humano sem limites. Ficam boiando na superfície, sem contato com as profundezas, repletas de sorrisos otimistas mas, incapazes de suportar o peso da responsabilidade, as tensões do compromisso, a sóbria realidade da idade adulta”.
Vale destacar que o universo Bergmaniano em toda a sua obra, é caracterizado por personagens que vivem dramas existenciais complexos e quase sempre, emocionalmente analfabetos. Jenny, numa das cenas se questiona “será que ficarei aleijada emocionalmente a vida toda”? Ingmar Bergman é de fato um cineasta com temática universal, construtor que é de personagens atemporais, que traduzem à perfeição a natureza humana e seus muitos matizes. Como Jung, ele também é europeu, filho de pastor luterano, e teve uma educação autoritária e rigorosa por parte dos pais. Jung nasceu no século XIX, ele na segunda década do Século XX. Ambos trazem em suas obras a fragilidade humana e a necessidade da presença acolhedora do outro.
Ligar a Dra. Jenny Isaksson, a personagem central do filme Face a Face (psiquiatra na faixa dos 35/40 anos, uma filha adolescente com um casamento e carreiras a principio consistentes) ao processo de individuação do ser humano, que é uma tarefa repleta de dificuldades que nem todos conseguem trilhar”, como diz Jung, não é empreitada das mais simples. Sim, falar desse percurso que é a individuação  é sabidamente complexo e mais, enxergar esse passo a passo num personagem editado pelo cinema em menos de duas horas, não é de fato tão simples, mesmo nos complexos, ambíguos e imprevisíveis personagens de Bergman, o cineasta da alma humana como é constantemente definido.
Jenny, após tantos sonhos, alucinações e crises de angustia e depressão, começa a admitir a si mesma e ao Dr.Tomas Jacobi (médico psiquiatra, amigo e terapeuta), que é infiel, que não tem grande afinidade com o marido e a filha, Mais, diz a ele gostaria  que a tentativa de estupro da qual foi vitima,  tivesse de fato  se concretizado,  que tem verdadeiro horror ao cheiro da velhice e  que se sente culpada por não ter correspondido a tantas e tantas expectativas. Aos  poucos vai sendo tomada pelo seu lado mais sombrio, vai ao fundo do poço e tenta o suicídio.
Após ser salva pelo médico/amigo, traz simbolicamente em sonhos todo o seu passado assustador, e numa cena antológica, faz um processo catártico em que interpreta com todas as nuances, não só a criança que foi, como a despótica avó e todas as suas cobranças e ameaças. Nesse ponto, a criança do passado é tomada pelo medo, vai às profundezas do Hades, e então pouco a pouco se reconcilia com o passado, e vai em busca do pote de ouro do arco-íris psíquico, que é o encontro com o Self, esse constructo teórico misterioso e intangível, que imprime sua totalidade em nossa vida psicológica, conforme vamos nos desenvolvendo, e que é algo que vai além do ego que nos rege, e vai muito, mas muito além do eu.
 Render-se ao Self, só se torna realidade quando interagimos com as diversas forças internas, nos reconhecemos e nos apropriamos delas, e conferimos a ele, o Self, a oportunidade de se encarnar na nossa existência. Talvez seja mais fácil reconhecê-lo nos momentos de dor e de sofrimento, desde que se enxergue nesse sofrimento uma razão maior, uma lição para a vida. O Self se apresenta como a imagem do divino, participando das qualidades de uma meta transcendente, constituindo-se dessa forma como um alvo móvel em cuja direção nos encaminhamos para nos individuar.



Face a Face (Serie de TV Sueca)
Desenvolvimento
Trazendo Jung para esse contexto, vale destacar que Nise da Silveira diz em “Vida e Obra de Jung” que para ele, o passo a passo do processo de individuação exige a integração de diversos elementos, tais como a sombra, animus/anima, desfazer projeções, bem como desvestir as diversas personas, ampliar a consciência, e também desenvolver suas potencialidades, processo esse que se constitui no principal eixo da sua psicologia. Diz mais: “para que se tome de fato consciência do processo de individuação, é preciso que a consciência seja confrontada com o inconsciente e se chegue a um equilíbrio entre os opostos”.
Todo ser tende a realizar o que existe nele em germe, a crescer, a completar-se. Esse caminho funciona na natureza e também vale para o homem, quanto ao corpo ou a psique. No humano, o desenvolvimento de suas potencialidades é impulsionado por forças instintivas inconscientes. Nós não somente somos capazes de tomar consciência desse desenvolvimento, como também, temos a capacidade de influenciá-lo. Essa ação contínua é o que se chama de processo de individuação, e não é um percurso fácil nem linear. Trata-se sim, de um movimento de circunvolução que conduz a um novo centro psíquico, o si mesmo ou Self. Quando o consciente e o inconsciente vêm ordenar-se em torno dele, a personalidade completa-se, sendo ele o centro da psique, como o ego é o centro do campo do consciente.
O conceito (diferentemente do processo) de individuação de Jung é claro: trata-se da tendência instintiva a realizar plenamente potencialidades inatas, mas não é de maneira alguma chegar a um patamar de perfeição e sim, a um estado de completude. O que seria então completar-se ou completude? Seria uma espécie de administração do fardo de conviver conscientemente com tendências opostas e até irreconciliáveis, mas inerentes à natureza humana, sejam escuras ou claras, sem conotações rígidas de bem ou mal. Para a personagem de Face a Face, médica respeitada e a principio bem casada, essa contradição é explicitada diversas vezes, mas vale destacar a maneira cruel como se refere à velhice e aos velhos, seu mais que “burocrático” desempenho como mãe e esposa, e sua vontade de que o estupro do qual quase foi vitima, tivesse de fato acontecido, e mais, o prazer que sentiu naquele momento.


Liv Ullmann em Face a Face.
Mas é bom destacar que não podemos confundir individuação com individualismo. O individualismo está ligado à realização das particularidades de sua natureza. Já o processo de individuação traz a ideia de se considerar componentes coletivos da psique humana (conteúdos do inconsciente coletivo), o que ao contrario da individualidade, traz como consequência positiva, um melhor funcionamento do homem dentro da coletividade, o que certamente não fomenta, como já dito, sentimentos orgulhosos e privilégios individualistas.
Todo esse processo passa por uma condição absolutamente vital, que é a de nos voltarmos para o nosso corpo que é a nossa terra, para que dentro desse corpo possamos então sintonizar a nossa singularidade e peculiaridade. Caso contrário, ficaremos flanando nas correntezas da vida. Outra condição para que a individuação ocorra, é o registro por parte de outros, pois só quando é percebida e registrada ela se materializa.
DeBus, autor do artigo “O Self é um Alvo Móvel: O Arquétipo da Individuação”, em outro dos artigos que compõem a obra Espelhos do Self, organizada por Christine Downing, traz ainda uma outra definição para o termo Self, “como um substrato inconsciente, cujo verdadeiro expoente na consciência é o ego, que está para o Self como o que se move está para aquilo que o desloca, como o objeto está para o sujeito, porque os fatores determinantes que provém do Self cercam esse ego por todos os lados e, portanto, lhes são sobre ordenados” (pg.38). “Não sou eu que me crio, mas, sim, eu aconteço a mim mesmo”. Ainda no mesmo artigo, o autor diz que para Jung, o ego é um dos muitos complexos no qual ocorrem sentimentos e pensamentos, e retém uma ilusão que dá origem a sentimentos e pensamentos. É apenas uma mera ilusão, uma vez que o Self vem destroná-lo durante o processo de individuação, que como a própria palavra insinua, traz a ideia de que é chegar a um acordo com a nossa própria natureza. É se ouvir, se escutar...
 Esse caminho para a individuação vai aos poucos desafiando o ego a mover-se numa direção desconhecida, em lugar de permanecer prisioneiro dos hábitos e movimentos familiares desconstruindo assim nossa identidade costumeira. O personagem de Bergman sai da situação de quase imobilidade, auxiliada pelo amigo/terapeuta, e vai para uma posição ou lugar que ainda não tinha ido antes, a de questionadora de valores pessoais, de se mostrar de fato como é, uma mãe que não tinha dado de fato afeto à filha, preconceituosa com a velhice, uma profissional quase burocrática, “sem conseguir dar as palavras certas aos pacientes”, como ela diz, e infiel ao marido. Se a angustia é a fala entupida, ao explicitar seus reais sentimentos, Jenny está no caminho certo.
Como já citado, uma vida pessoal na qual o Self não atua, corre o risco de ficar estagnada. Ele vai então nos desafiar com a perspectiva da individuação, quando geralmente em determinada fase da segunda metade da vida, começamos a ter uma sensação de desconforto. É um processo que exige uma ampliação ou alargamento do que chamamos de personalidade.
 No curso dessa individuação, nossa vida passa então a ser “governada” por um centro de gravidade e organização, que inclui as realidades transpessoal e inconsciente. Mesmo quando o Self se estabelece e toma conta, seu modo de governar nossa vida pessoal vai se modificando à medida que avançamos esse mais que delicado processo de individuação, fato que pode ser verificado pela maneira como praticamos o poder nas nossas relações, ou seja, pela influencia desse Self, vamos abandonando ou mesmo modificando nossas projeções em nome do amadurecimento.
Aos poucos, nos harmonizamos com a natureza do cosmo na medida correta. Ele, o Self, age por trás dos nossos anseios de relação, levando a uma hegemonia que implica no sacrifício de tudo aquilo que pensávamos ser. Move-se da periferia da nossa vida psicológica em direção ao seu centro. Para a maioria das pessoas o Self começa a exercer seu efeito de centração, de individuação, tanto nos planos consciente como inconsciente, lá pelo meio da vida, como citado anteriormente.
A dor e o perigo inerentes ao processo de individuação se tornam absolutamente necessários. Com base em imagens de sonhos, imagens de contos de fadas, mitos e opus alquímico e em outras produções do inconsciente e em observações pessoais e de seus clientes Jung citado por Nise da Silveira na obra (Jung Vida e Obra), destaca as principais etapas do processo de individuação. O menos complexo deles talvez seja o reconhecimento e o processo de desnudar-se ou mesmo, de desvestir as inúmeras personas que se adquire ao longo da vida. Não é desfazer é desvestir. É claro que as personas são muito uteis no sentido de estar devidamente ajustado as convenções coletivas, a ação de apresentar-se mais como os outros desejam e menos, bem menos, de como se é de verdade. “Eu sei que devo fazer sempre o que você manda, porque tenho sempre a consciência pesada. Eu sei que fiz tudo errado, desculpas. Sou a menininha da vovó, a queridinha da vovó, com ela estou sempre protegida” diz a menina que foi Jenny a avó em um dos seus reveladores sonhos...
O termo persona vem do grego. Eram mascaras que os atores usavam, para representar seu papel. Pode sim representar um sistema útil de defesa, mas o perigo é o de o ego consciente se identificar excessivamente com essa “defesa”, fazendo com que o individuo fusione-se com a sua persona, não tendo mais capacidade racional de separar-se ou mesmo desvestir-se dessa “casca”. Quando a mascara usada nas relações é retirada, aparece então uma face desconhecida, que traz a tona componentes também desconhecidos que formam um aspecto pessoal escuro e ignorado, que nos assusta e do qual fugimos, a nossa sombra.
Tal sombra psicológica faz parte da nossa personalidade, contendo elementos que não aceitamos em nós, que reprimimos e por isso mesmo, projetamos no outro, seja nosso parceiro, no vizinho, ou mesmo uma figura símbolo que demonizamos.
Se não entramos no quarto escuro, não sabemos de fato o que tem lá dentro. Lançar luz sobre esse quarto escuro pode ser libertador, pode ampliar a nossa consciência, e é exatamente isso que Jenny Isaksson faz quase trinta anos depois ao entrar em sonho naquele armário escuro que tanto temia. Aí nem sempre é o outro que está errado, descobrimos uma trave no nosso próprio olho. Nos sonhos, a sombra é personificada por atores coadjuvantes, julgados sem expressão, mas num processo analítico conduzido com seriedade, devem de fato ser considerados e ampliados seja por elementos da mitologia ou da alquimia. A sombra é uma massa espessa, de componentes aglomerados de pequenas fraquezas, aspectos considerados inferiores pelo contexto social, por emoções imaturas, complexos reprimidos e forças genuinamente maléficas. Mas existem também nessa massa espessa, traços positivos, qualidades valiosas que não se desenvolveram devido a condições contextuais e externas desfavoráveis naquele momento e, também por não termos consciência da nossa sombra e por ser tão difícil para nós penetrá-la.
Depois de travar conhecimento com a própria sombra, outra tarefa mais complexa se apresenta, reconhecer a anima e o animus. Anima seria a porção feminina inconsciente no homem, definida por Jung como “a representação psíquica da minoria de gens femininos presentes no corpo do homem”. Essa feminilidade inconsciente, indiferenciada, inferior, manifesta-se no dia a dia por despropositadas mudança de humor ou mesmo caprichos. Compõem também a anima, as experiências fundamentais que o homem teve com a mulher através dos milênios.








Face to Face 1976

Jenny Isaksson no hospital,  após a tentativa de suicídio.
Basta destacar que o primeiro receptáculo da anima é a mãe, que faz dela aos olhos do filho, um ser mágico. Depois essa anima se transfere para as estrelas da musica, cinema e de forma particular para a mulher com a qual o homem vai se relacionar amorosamente, provocando os complicados enredamentos do amor e das decepções causadas pela impossibilidade do objeto real corresponder plenamente à imagem oriunda do inconsciente, transferência essa que nem sempre se processa de modo satisfatório. Se a retirada da imagem da anima no primeiro receptáculo não se constituir de forma adequada, também não será constituída de forma adequada na figura da esposa e amante.
Na primeira metade da vida a anima projeta-se de preferência no exterior, sobre seres reais, estando presente na problemática do amor, ilusões e ambém das desilusões. Já na segunda metade da vida, o jogo dessas projeções vai se esgotando, e a mulher reprimida dentro do homem vai assumindo a função de trazer a ele leveza, fragilidade, gentileza e sensibilidade. O homem forte preso no constructo do masculino, que nunca se fragiliza, estará sempre amuado. A anima torna-se função psicológica da mais alta importância, porque faz uma ponte na relação com o mundo interior, na qualidade de intermediária entre o consciente e o inconsciente e função de relacionamento exterior, na qualidade de sentimento conscientemente aceito.
Neste artigo é importante abordar mais detalhadamente o ânimus, que também é a masculinidade existente no psiquismo da mulher. Essa masculinidade também é inconsciente e manifesta-se de modo ordinário, como intelectualidade mal diferenciada e simplista. Com frequência vemos mulheres sustentarem afirmações e pontos de vista que não resistem a qualquer exame lógico, mas são defendidas teimosamente e acirradamente. O animus opõem-se à própria essência da natureza feminina, que busca antes de tudo, um relacionamento afetivo. Sua hipertrofia resultará em um humor aguerrido, querelante.
O animus condensa as experiências que a mulher vivenciou nos encontros com o homem no curso de milênios, e a partir desse imenso material inconsciente, ela modela ou mesmo idealiza a imagem do homem que procura. Por analogia a anima, o primeiro receptáculo do animus será o pai, transferindo-se depois para o mestre, o ator, o esportista, projetando então sobre ele, uma imagem ideal, que não resiste à convivência e as comparações do cotidiano, e logo vêm as decepções. .
As relações entre o homem e a mulher acontecem nesse espaço quase fantasmagórico que é a interface entre anima e animus. O animus assume personificações de contos de fada, mitos e outras produções em formas de animais, monstros, demônios, príncipes, criminosos, heróis, feiticeiros e homens brutos.
O animus nos seus aspectos positivos tem funções importantes a realizar, como mediar o inconsciente e consciente, similar ao papel desempenhado pela anima no homem. Se integrado de forma adequada pelo consciente, dá a mulher a capacidade adequada de reflexão, autoconhecimento e gosto pelas coisas do espírito. Há alguns elementos no filme, que nos permitem afirmar que Jenny não desenvolveu de forma adequada seu animu. Os homens de sua vida são figuras indiferentes, ausentes ou frágeis, como o pai, o avô e até mesmo o marido.
Nos sonhos surgem então as primeiras figurações desse centro profundo da psique. Nos sonhos femininos, o Self revela-se em forma de figuras femininas superiores, das quais emana benevolência, tais como a sacerdotisa, a deusa mãe, a deusa do amor. Nos sonhos masculinos assume o aspecto do velho sábio, do mago ou mestre espiritual, do filosofo. Essas personificações são dotadas de grande potencial energético, causando ao sonhador uma impressão duradoura de maravilhamento.
Self não é só centro profundo, é a totalidade da psique. Repetindo o que já foi citado, o processo de individuação e o caminhar rumo ao Self, passam por uma série de requisitos já listados e também pelo sofrimento e pela dor. A personagem de Bergman enfrenta ao longo da vida uma pesada via crucis, onde não falta muita angústia, dor, inadequação aos papéis que dela exigiam (como o de mãe dedicada e amorosa), medo, ira e sofrimento, muito sofrimento.
Reconhecer e assimilar a própria sombra, enfrentar e dissolver complexos construídos ao longo da vida, exterminar ou pelo menos diminuir as projeções, são aspectos que aliados à descida às trevas abissais e ao confronto quase que apocalíptico entre o consciente e inconsciente, vão fatalmente ampliar o mundo interior, resultando numa nova personalidade não mais centrada apenas no ego. O centro dessa nova personalidade estabelece-se agora com o Self, essa força energética que englobará todo o sistema psíquico.
Que consequências terá essa nova personalidade na vida de um individuo? A totalização do ser, já não mais fragmentado interiormente. Não se reduzirá a um ego aprisionado dentro de estreitos limites. Os valores serão agora mais vastos, e os prazeres e sofrimentos serão vivenciados num nível mais alto de consciência, sem a maquiagem que um dia foi absolutamente necessária. Esse individuo torna-se então um ser completo, composto de inconsciente e consciente, que inclui aspectos claros, escuros, masculino, femininos, com a harmonização de aspectos antes opostos e irreconciliáveis. Aqueles que não se diferenciam, e uma significativa parte dos indivíduos não trilha essa odisseia, permanecem obscuramente envolvidos numa trama de projeções, confundem-se, fusionam-se com outros e são levados a agir em total desacordo consigo mesmo, vivenciando um permanente estado neurótico.

Bergman


Conclusão
Foram as experiências pessoais de Jung que o levaram a teorizar sobre o processo de individuação. Vivendo intensamente todas as fases, ele observou em algum momento, que o curso do desenvolvimento da personalidade de seus analisandos, seguia um roteiro parecido, progredindo em relação ao centro, a um núcleo energético que se revelava no intimo da psique, o Self. Na obra de sua maturidade “Resposta a Jó” (pg.111), diz que no processo de individuação, são tantos os elementos obscuros que vêm à luz, que a personalidade é como que radiografada, ao mesmo tempo que a consciência ganha em amplidão e percepção. Mais, fala que a “a confrontação entre a consciência e o inconsciente faz com que a luz brilhe nas trevas, e não somente seja compreendida pelas trevas, como também as compreenda”.
No artigo “Ser e não Ser: Eis a questão”, publicado no Jornal O Globo, o médico psicanalista Carlos Vieira diz que “compreendemos desde cedo que temos um corpo, uma mente, uma origem, pais, filogênese, mas isso não significa de modo automático, que temos ou adquirimos uma identidade própria” Para ele, “a vida começa num grito de socorro, numa ventania, numa angustia, como na busca de um alume que nos proteja da precariedade da nossa condição humana. Começa aqui a necessidade do outro para sobreviver. Se os nossos pais nos dão a vida, um nome e sobrenome, não nos dão a nossa personalidade. Se constituir é um processo próprio e permeado de angustia”. Em algum momento das nossas vidas, teremos que abdicar das ações que engendramos para sermos amados, e vamos em busca do risco, na procura do terreno até então desconhecido.
Ainda no mesmo artigo, Moraes diz que “Zorba o Grego, personagem daquele famoso filme,  afirma que “para ser livre é preciso ser louco”. Não aquela loucura insana, mas uma loucura criativa, emancipatória, ousada, que cria e nos faz ter uma identidade própria, sem ser o filho de alguém, o neto do fulano de tal, mantendo aqueles pactos perversos familiares que nos fazem obedientes por escutarmos desde cedo que teremos tudo o que desejarmos (desde que e só se) obedecermos às ordens e aos ideais e anseios quase sempre deles, daqueles que nos comandaram ou ainda comandam”. Diz mais, “não fomos consultados se concordávamos com tantas expectativas que não foram concebidas ou construídas por nós”. Felizmente muitos se libertam dessas imposições cruéis e buscam se constituir e se individuar com os riscos que essa nova posição traz, com o quantum de incerteza que esse movimento do salto sem rede requer...
Na singular obra do sueco Bergman, a Dra. Jenny Isaksson vai pouco a pouco fazendo um grande “acerto de contas” com seus algozes (que em ultima instancia são seus medos, fantasmas, sua sombra e a enorme culpa que carrega), se expõe visceralmente ao amigo/terapeuta, externa sua dor que explode e a leva à tentativa de suicídio, é possuída pelo medo da morte e pelo horror ao cheiro da velhice, pela revolta, pela dor, pela culpa e, numa catarse que quase a leva a morte, segue em busca de vivenciar o segundo ato do resto da sua vida, já mais consciente de suas fraquezas, mais inteirada de sua real e ambivalente natureza, conciliando opostos, ciente de que não tem o amor da filha nem a solidariedade do marido quase ausente. Só pode contar de fato com ela mesma no caminho de sua individuação. Renascida literalmente das cinzas no catártico sonho final, essa nova Jenny parte então para se tornar real, como diz, e para “acabar de viver o que lhe cabe, sua vida, para que não mais existam amores servis”, como fala a poesia O Amor, de Vladimir Maiakovski... log


Referências Bibliográficas
SILVEIRA, Nise. Jung Vida e Obra. 22ª reimpressão. Editora Paz e Terra, 2011.
HTTP://oglobo.com.br/pais/moreno/posts/2012/08/08ser-não-ser-eis-questão-
459132.asp.Psicanálise da Vida Cotidiana (Ser e não ser eis a questão).
DOWNING, Christine (org.).As Imagens Arquetípicas que Moldam sua Vida.Editora Cultrix-São Paulo1991.
JUNG,Carl Gustav.Resposta a Jó. 7 ed. – Ed.Petrópolis, Vozes, 2008.
JUNG, Carl Gustav. Semibários sobre sonhos de crianças: sobre o método de interpretação dos sonhos;interpretação psicológica de sonhos de crianças. Ed.Vozes,,2011
BERGMAN, Ingmar. Face a Face. Filme. 1976. Suécia.
MAIAKOVSKI, Vladimir.VELOSO, Caetano. O Amor, 1981

(*) O autor é psicólogo com especialização pelo Instituto Junguiano de Brasília, e aluno da Primeira Turma de Formação de Analistas do IJBsB.

3 comentários:

  1. Haroldo parabéns pelo excelente artigo, profundo, nos leva à grandes questões da vida humana muito bem contextualizadas à luz da psicologia junguiana! Ótima leitura! Obrigada

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir

    2. Obrigado querida amiga Nice Luconi. Graças a competência, dedicação e persistência de pessoas como você é que o Instituto Junguiano de Brasilia se tornou realidade.E graças aos preciosos ensinamentos, debates, lições, aulas, leituras, supervisões ministradas ao longo da Especialização e do Curso de Formação de Analista com mestres que dignificam e iluminam a nossa profissão e as nossas vidas, é que podemos dar voz e forma aos ensinamentos dos ultimos anos. Obrigado mais uma vez e um abraço grande e de coração do amigo Haroldo Michiles

      Excluir