sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O MITO DA CAVERNA DE PLATÃO E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO NA PSICOLOGIA ANALÍTICA


AUTORA: Regina Carvalho Ferreira
TUTOR: Dr. Gelson Luís Roberto


O Mito da Caverna de Platão e o Processo de Individuação na Psicologia Analítica

    Para Platão, o verdadeiro sábio é necessariamente bom porque é a moralidade que confere a reta razão, a capacidade de discernimento da verdade. Em seu famoso Mito da Caverna, uma das passagens mais clássicas da história da Filosofia, parte constituinte do livro VII de "A República",  Platão usa de metáforas para explicar as fraquezas humanas e necessidade de nos amarmos e nos conhecermos, de nos instruirmos para nos libertarmos da ignorância. Platão nos adverte da necessidade de buscarmos iluminar o espírito, buscando compreender a justiça e o bem de todas as coisas do mundo.    
    Conta O Mito da Caverna que homens estão desde a infância acorrentados pelas pernas e pelo pescoço de modo a não poderem movimentar nem mesmo a cabeça, permanecendo de costas para a entrada da caverna. Estão assim imobilizados e com o campo visual limitado, somente percebendo as sombras nas paredes internas projetadas pela luz de uma fogueira que arde atrás deles. Assim, imaginam que toda a luminosidade possível proveniente da luz da fogueira é a única que reina no mundo.
    Falando de maneira simbólica em relação ao mito, podemos dizer que a religiosidade faz estreitas ligações com o mesmo, principalmente o local, a caverna, despertando as questões mais íntimas. As ligações e associações são bem marcantes, começando pelo nascimento de Jesus numa gruta, assim como também foi em local parecido que seu corpo foi sepultado, após o calvário, até a ressurreição. Os santuários, os oratórios e as capelinhas parecem remeter a símbolos próprios para certa reflexão e contato interior.
    Em muitas culturas a caverna aparece como local apropriado para o nascimento e o renascimento, considerado como receptáculo de energia telúrica. Por estar normalmente incrustada em elevação ou área montanhosa, esse conjunto desperta a associação com o local propício aos deuses em muitos povos; na Grécia antiga, a organização divina feita por Zeus tinha como base o monte Olimpo.
    A caverna também tem relação com o sentido de chegada e partida, entrada e saída da vida, lembrando a importância do útero materno e do acolhimento necessário para as transformações. A Grande Mãe participa com seu princípio gerador e nutridor, propiciando também os incentivos para o crescimento; desse princípio sai a vida que também a ele retorna após cumprir a sua jornada. Como um retorno à origem, a caverna também é um local de regeneração. Entrar nesse ambiente pode significar um mergulho profundo, uma volta ao início, podendo então "subir ao céu", ultrapassar o cosmo da própria consciência, transcender. A caverna se apresenta como um local de passagem tanto da terra para o céu ou  como o caminho inverso. Lá, podemos encontrar dois aspectos: o positivo e o negativo - de todo grande símbolo, e o paralelo inevitável do mundo do inconsciente, de onde viemos (eu - ego) e para onde retornaremos, essa volta é sinalizada quando sonhamos e fazemos esta passagem transitória pelo mundo do inconsciente.
    De acordo com Jung, a psique humana é permeada por um jogo antagônico entre a atitude consciente e  inconsciente. É na relação destes opostos na busca da totalidade que temos uma das chaves para o processo de individuação. Isto envolve a aceitação de qualidades que conflitam com o ideal do ego e que, por vezes, confrontam valores culturais e morais, mas é uma condição importante para buscar o autoconhecimento, pois é a parte inconsciente de nossa personalidade. O ego é o centro da consciência, e em relação ao self, apresenta limitações por lidar com recursos disponíveis apenas na consciência, visto que esta não é capaz de contemplar todo o conteúdo presente no inconsciente. “Portanto, em minha concepção, o ego é uma espécie de complexo, o mais próximo e valorizado que conhecemos. É sempre o centro de nossas atenções e de nossos desejos, sendo o cerne indispensável da consciência” (JUNG, 1999, § 7).


    Para entendermos melhor, o que acontece é que  inicialmente o ego encontra-se fundido ao self, que no decorrer do desenvolvimento, inclusive propicia meios para que este ego confronte e/ou satisfaz, ele próprio, o self, como totalidade. Este relacionamento, entre ego e self, é um processo continuo, entretanto, apesar do self ter um estado de supremacia, depende do ego para estabelecer relacionamento com o exterior ou mundo cotidiano. Sendo assim, são dois grandes sistemas psíquicos interdependentes. A este relacionamento, utilizamos a expressão ou denominação de Eixo Ego-Self.  “É evidente que um tal modo de proceder só é legítimo quando há razão suficiente para tal. Só se pode deixar a condução do processo ao inconsciente, quando houver nele uma vontade de dirigir. Isto só acontece, quando a consciência está de certo modo em uma situação crítica. Quando se consegue formular o conteúdo inconsciente e entender o sentido da formulação, surge a questão de saber como o ego se comporta diante desta situação. Tem, assim, início a confrontação entre o ego e o inconsciente. Esta é a segunda e a mais importante etapa do procedimento, isto é, a aproximação dos opostos da qual resulta o aparecimento de um terceiro elemento que é a função transcendente. Neste estágio, a condução do processo já não está mais com o inconsciente, mas com o ego" (JUNG , OC - Vol. 8/2, 2013, § 181). É nesse jogo que tomamos consciência de muitas das nossas atitudes perante o mundo.
    Sendo assim, podemos entender que, no Mito em análise, a caverna é a imagem do mundo, mostrando a situação extremamente limitada do homem na Terra. "A luz indireta que ilumina suas paredes provém de um sol invisível: mas indica o caminho que a alma deve seguir a fim de encontrar o bem e a verdade: a subida para o alto e a contemplação daquilo que existe no alto representam o caminho da alma para elevar-se em direção ao lugar inteligível. Para Platão, o simbolismo da caverna implica portanto uma significação não apenas cósmica, mas também ética e moral. A caverna e seus espetáculos de sombras ou de fantoches representam esse mundo das aparências agitadas, do qual a alma deve sair para contemplar o verdadeiro mundo das realidades - o mundo das ideias" (Chevalier, 2008). Portanto, o indivíduo, à medida em que amplia a sua consciência através da descoberta de si e do mundo, avança em seu processo de individuação.



    Os prisioneiros tinham como única realidade as sombras projetadas nas paredes: deles próprios, dos outros homens acorrentados e também daqueles que, nas suas costas, mantinham acesa a fogueira. Com estes eles não tinham contato visual direto, e nem podiam imaginar que o Sol lá fora inundava a Terra com sua estonteante luminosidade. Ao trazer a possibilidade de um dos prisioneiros fugir dessa condição, em liberdade, descobre não apenas que as sombras eram feitas por homens como ele, mas também que provinham de todo o mundo de natureza até então desconhecida. Diante do novo mundo, encanta-se com coisas nunca vistas e com o esplendor do sol.  Aos poucos vai se adaptando, pois a luminosidade e as possibilidades de ampliação do conhecimento são impressionantes. Nesse contexto surge a questão crucial: e se este homem retornasse para contar aos prisioneiros tudo o que descobrira, como seria interpretado? Um mentiroso ou alguém dominado pela ilusão?
    Entendemos que a sombra que é projetada na parede descrita no mito representa a ilusão de um mundo vista pelos prisioneiros. É por estas imagens projetadas que reconhecem o mundo. No entanto, há muito mais a descobrir e conhecer fora da caverna. O homem de hoje está acorrentado em seus próprios pensamentos ilusórios. O que se percebe no mito e nos dias de hoje é que se vive um mundo de aparências. No mito, os prisioneiros acreditam que essas imagens é o mundo real, mas sabe-se que esse mundo é um mundo criado por outros e não um mundo vivido e experimentado pelo prisioneiro. Estamos constantemente negando nosso interior por ainda cultivarmos o  mundo ilusório. Usamos nossas máscaras sociais (persona) para lidar com esse mundo, criando aparências para sermos aceitos, o que dificulta a apresentação do eixo ego-self.
     Possivelmente Platão fala indiretamente aos seus ouvintes com suas crenças e supertições. Ele fugia das amarras comuns que prendem o homem e partia para uma compreensão mais ampla do mundo. Ainda sobre a metáfora, o processo para a obtenção da consciência abrange dois domínios: o domínio das coisas sensíveis e o domínio das ideias. Segundo Platão, a realidade está no mundo das ideias e a maioria da humanidade vive na condição da ignorância, no mundo ilusório das coisas sensíveis, no grau da apreensão de imagens, as quais são imutáveis, não são funcionais e, por isso, não são objetos de conhecimento.
    O estudioso mais dedicado sabe que não pode perceber, apreender ou compreender a totalidade dos fatos e do mundo concreto. Para conhecermos a realidade se faz necessário percebermos melhor os objetos e o cenário do mundo exterior. Mas, nesse entendimento, terá enorme influência o modo como funcionamos interiormente, ou seja, como estamos lidando com esses sinais e imagens que transcendem o nosso ego, pois estes estarão interferindo na nossa percepção, nos nossos pensamentos, fantasias, intuições e atitudes.
    Conhecer nossas limitações pessoais é um início de uma longa jornada no processo de individuação e crescimento pessoal. O emblemático simbolismo do Mito da Caverna nos mostra as possibilidades de uma constante gestação de seres com maior ampliação da sua própria consciência e que parece ser esse o objetivo da vida que acontece nas diferentes culturas. Essa situação ocorre constantemente conosco, ainda mais se estamos muito enraizados ou presos em uma determinada crença ou cultura, por mais que nos sinalizamos outras possibilidades, é muito difícil nos abrirmos a novos pensamentos, atitudes.
    Sair da caverna, ou seja, deixar o homem velho, pode não ser algo agradável. Nos custaria abrir mão de uma vida construída com base em preconceitos e ilusões. Acreditamos que o que está diante dos nossos olhos é o real, mas ao buscarmos nos conhecermos, perceber novos caminhos e que há um novo mundo para além do nosso olhar, veremos que podemos ter uma vida saudável e plena. É o que chamaríamos de autoconhecimento. Contudo, é de grande valia a determinação, a disciplina, a coragem e a vontade para deixar a caverna, e acima de tudo, persistir fora dela. Diante das variadas dificuldades desejamos voltar para a nossa zona de conforto, regressar para uma postura cômoda quando nos deparamos com situações que nos exponham ou com situações que ainda não aprendemos a lidar. Muitas vezes, com isso, buscamos solucionar nossas dificuldades de maneira fácil, fugindo do enfrentamento dos problemas, das situações, sem nos darmos a oportunidade de enfrentar a realidade de maneira honesta conosco mesmo.    Na Psicologia Analítica, uma das coisas importante é buscar permitir que as pessoas fortaleçam seu potencial, sua criatividade e capacidade de lidar com os problemas de maneira mais tranquila e segura possível. Os conflitos que vivemos são oportunidades de olharmos para nossas vidas e de encontrarmos um meio de convivermos melhor com nossa luz e nossa sombra, pois parte do princípio de que existe um sentido para tudo o que ocorre na vida de todos nós. E esse sentido é a realização de um propósito maior em nossa existência. Avançando na psicoterapia nos aproximamos cada vez mais de nossa essência, do nosso sagrado trazendo a realização pessoal, um sentimento de unidade com a vida.
    Jung por meio de seus estudos nos trouxe o exercício analítico que ultrapassa a função paliativa: ao promover o autoconhecimento e a expansão da consciência. Ao olhar para dentro de si, você se percebe muito maior do que a consciência era capaz de imaginar. "Sua visão se tornará clara apenas quando você puder olhar dentro do seu coração. Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro acorda". Se liberta!


    Diante de seu legado sobre o processo de individuação, Jung nos diz que "tudo depende de como olhamos para as coisas, e não de como elas são em si mesmas". Nos esclarece também que "até onde conseguimos discernir, o único propósito da existência humana é acender uma luz na escuridão da mera existência" e para que isso ocorra, a jornada deve iniciar de dentro para fora, ou melhor, olhar para dentro traz a possibilidade de nos conhecermos e deixarmos de lado as ilusões de como é, de como deveria ser, e de como não deveria ter certos problemas.  A individuação é um arquétipo, e no processo de individuação o self (Si-mesmo) promove chamados para este processo sem um final determinado, visto que a psique é dinâmica. No entanto, é preciso que o Ego queira e sinta-se motivado a cultivar este processo, cuja a tendência, muitas vezes é ignorá-lo, visto que, normalmente é um processo doloroso. "O processo psicológico da individuação está intimamente vinculado a assim chamada função transcendente..." (Jung, OC - Vol. 6, 2013, § 854). "A função transcendente não se desenvolve sem meta, mas conduz à revelação do essencial no homem. No início não passa de um processo natural. Há casos em que ela se desenvolve sem que tomemos consciência, sem nossa contribuição, e pode até impor-se à força, contrariando a resistência do indivíduo. O sentido e a meta do processo são a realização da personalidade originária, presente no germe embrionário, em todos os seus aspectos. É o estabelecimento e o desabrochar da totalidade originária, potencial. Os símbolos utilizados pelo inconsciente para exprimi-la são os mesmos que a humanidade sempre empregou para exprimir a totalidade, a integridade e a perfeição; em geral, esses símbolos são formas quaternárias e círculos. Chamei a esse processo de processo de individuação" (Jung, OC - Vol. 7/1, 2014, § 186).
    O Mito da Caverna faz referência ao processo de individuação quando nos mostra a necessidade de sair do mundo ilusório em busca de uma consciência maior a respeito de si e do mundo.


BIBLIOGRAFIA:

CHEVALIER, J. e Gheerbrant, A. Dicionário de símbolos. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2008.

JUNG, C. G. Fundamentos de psicologia analítica. Petrópolis: Vozes, 1999.

JUNG, C. G. OC - Vol. 6. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, C. G. OC - Vol. 7/1. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2014.
JUNG, C. G. OC - Vol. 8/2. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, C. G. OC - Vol. 9/1. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014.
PLATÃO. O mito da caverna. São Paulo: Edipro, 2015.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma : uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2006.

BRASÍLIA
07/2017


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