TUTOR: Dr. Gelson Luís Roberto
O Mito da Caverna de Platão e o Processo de Individuação na Psicologia Analítica
Para Platão, o verdadeiro sábio é necessariamente bom porque é a moralidade que confere a reta razão, a capacidade de discernimento da verdade. Em seu famoso Mito da Caverna, uma das passagens mais clássicas da história da Filosofia, parte constituinte do livro VII de "A República", Platão usa de metáforas para explicar as fraquezas humanas e necessidade de nos amarmos e nos conhecermos, de nos instruirmos para nos libertarmos da ignorância. Platão nos adverte da necessidade de buscarmos iluminar o espírito, buscando compreender a justiça e o bem de todas as coisas do mundo.
Conta O Mito da Caverna que homens estão desde a infância acorrentados pelas pernas e pelo pescoço de modo a não poderem movimentar nem mesmo a cabeça, permanecendo de costas para a entrada da caverna. Estão assim imobilizados e com o campo visual limitado, somente percebendo as sombras nas paredes internas projetadas pela luz de uma fogueira que arde atrás deles. Assim, imaginam que toda a luminosidade possível proveniente da luz da fogueira é a única que reina no mundo.
Falando de maneira simbólica em relação ao mito, podemos dizer que a religiosidade faz estreitas ligações com o mesmo, principalmente o local, a caverna, despertando as questões mais íntimas. As ligações e associações são bem marcantes, começando pelo nascimento de Jesus numa gruta, assim como também foi em local parecido que seu corpo foi sepultado, após o calvário, até a ressurreição. Os santuários, os oratórios e as capelinhas parecem remeter a símbolos próprios para certa reflexão e contato interior.
Em muitas culturas a caverna aparece como local apropriado para o nascimento e o renascimento, considerado como receptáculo de energia telúrica. Por estar normalmente incrustada em elevação ou área montanhosa, esse conjunto desperta a associação com o local propício aos deuses em muitos povos; na Grécia antiga, a organização divina feita por Zeus tinha como base o monte Olimpo.
A caverna também tem relação com o sentido de chegada e partida, entrada e saída da vida, lembrando a importância do útero materno e do acolhimento necessário para as transformações. A Grande Mãe participa com seu princípio gerador e nutridor, propiciando também os incentivos para o crescimento; desse princípio sai a vida que também a ele retorna após cumprir a sua jornada. Como um retorno à origem, a caverna também é um local de regeneração. Entrar nesse ambiente pode significar um mergulho profundo, uma volta ao início, podendo então "subir ao céu", ultrapassar o cosmo da própria consciência, transcender. A caverna se apresenta como um local de passagem tanto da terra para o céu ou como o caminho inverso. Lá, podemos encontrar dois aspectos: o positivo e o negativo - de todo grande símbolo, e o paralelo inevitável do mundo do inconsciente, de onde viemos (eu - ego) e para onde retornaremos, essa volta é sinalizada quando sonhamos e fazemos esta passagem transitória pelo mundo do inconsciente.
De acordo com Jung, a psique humana é permeada por um jogo antagônico entre a atitude consciente e inconsciente. É na relação destes opostos na busca da totalidade que temos uma das chaves para o processo de individuação. Isto envolve a aceitação de qualidades que conflitam com o ideal do ego e que, por vezes, confrontam valores culturais e morais, mas é uma condição importante para buscar o autoconhecimento, pois é a parte inconsciente de nossa personalidade. O ego é o centro da consciência, e em relação ao self, apresenta limitações por lidar com recursos disponíveis apenas na consciência, visto que esta não é capaz de contemplar todo o conteúdo presente no inconsciente. “Portanto, em minha concepção, o ego é uma espécie de complexo, o mais próximo e valorizado que conhecemos. É sempre o centro de nossas atenções e de nossos desejos, sendo o cerne indispensável da consciência” (JUNG, 1999, § 7).
Sendo assim, podemos entender que, no Mito em análise, a caverna é a imagem do mundo, mostrando a situação extremamente limitada do homem na Terra. "A luz indireta que ilumina suas paredes provém de um sol invisível: mas indica o caminho que a alma deve seguir a fim de encontrar o bem e a verdade: a subida para o alto e a contemplação daquilo que existe no alto representam o caminho da alma para elevar-se em direção ao lugar inteligível. Para Platão, o simbolismo da caverna implica portanto uma significação não apenas cósmica, mas também ética e moral. A caverna e seus espetáculos de sombras ou de fantoches representam esse mundo das aparências agitadas, do qual a alma deve sair para contemplar o verdadeiro mundo das realidades - o mundo das ideias" (Chevalier, 2008). Portanto, o indivíduo, à medida em que amplia a sua consciência através da descoberta de si e do mundo, avança em seu processo de individuação.
Entendemos que a sombra que é projetada na parede descrita no mito representa a ilusão de um mundo vista pelos prisioneiros. É por estas imagens projetadas que reconhecem o mundo. No entanto, há muito mais a descobrir e conhecer fora da caverna. O homem de hoje está acorrentado em seus próprios pensamentos ilusórios. O que se percebe no mito e nos dias de hoje é que se vive um mundo de aparências. No mito, os prisioneiros acreditam que essas imagens é o mundo real, mas sabe-se que esse mundo é um mundo criado por outros e não um mundo vivido e experimentado pelo prisioneiro. Estamos constantemente negando nosso interior por ainda cultivarmos o mundo ilusório. Usamos nossas máscaras sociais (persona) para lidar com esse mundo, criando aparências para sermos aceitos, o que dificulta a apresentação do eixo ego-self.
Possivelmente Platão fala indiretamente aos seus ouvintes com suas crenças e supertições. Ele fugia das amarras comuns que prendem o homem e partia para uma compreensão mais ampla do mundo. Ainda sobre a metáfora, o processo para a obtenção da consciência abrange dois domínios: o domínio das coisas sensíveis e o domínio das ideias. Segundo Platão, a realidade está no mundo das ideias e a maioria da humanidade vive na condição da ignorância, no mundo ilusório das coisas sensíveis, no grau da apreensão de imagens, as quais são imutáveis, não são funcionais e, por isso, não são objetos de conhecimento.
O estudioso mais dedicado sabe que não pode perceber, apreender ou compreender a totalidade dos fatos e do mundo concreto. Para conhecermos a realidade se faz necessário percebermos melhor os objetos e o cenário do mundo exterior. Mas, nesse entendimento, terá enorme influência o modo como funcionamos interiormente, ou seja, como estamos lidando com esses sinais e imagens que transcendem o nosso ego, pois estes estarão interferindo na nossa percepção, nos nossos pensamentos, fantasias, intuições e atitudes.
Conhecer nossas limitações pessoais é um início de uma longa jornada no processo de individuação e crescimento pessoal. O emblemático simbolismo do Mito da Caverna nos mostra as possibilidades de uma constante gestação de seres com maior ampliação da sua própria consciência e que parece ser esse o objetivo da vida que acontece nas diferentes culturas. Essa situação ocorre constantemente conosco, ainda mais se estamos muito enraizados ou presos em uma determinada crença ou cultura, por mais que nos sinalizamos outras possibilidades, é muito difícil nos abrirmos a novos pensamentos, atitudes.
Sair da caverna, ou seja, deixar o homem velho, pode não ser algo agradável. Nos custaria abrir mão de uma vida construída com base em preconceitos e ilusões. Acreditamos que o que está diante dos nossos olhos é o real, mas ao buscarmos nos conhecermos, perceber novos caminhos e que há um novo mundo para além do nosso olhar, veremos que podemos ter uma vida saudável e plena. É o que chamaríamos de autoconhecimento. Contudo, é de grande valia a determinação, a disciplina, a coragem e a vontade para deixar a caverna, e acima de tudo, persistir fora dela. Diante das variadas dificuldades desejamos voltar para a nossa zona de conforto, regressar para uma postura cômoda quando nos deparamos com situações que nos exponham ou com situações que ainda não aprendemos a lidar. Muitas vezes, com isso, buscamos solucionar nossas dificuldades de maneira fácil, fugindo do enfrentamento dos problemas, das situações, sem nos darmos a oportunidade de enfrentar a realidade de maneira honesta conosco mesmo. Na Psicologia Analítica, uma das coisas importante é buscar permitir que as pessoas fortaleçam seu potencial, sua criatividade e capacidade de lidar com os problemas de maneira mais tranquila e segura possível. Os conflitos que vivemos são oportunidades de olharmos para nossas vidas e de encontrarmos um meio de convivermos melhor com nossa luz e nossa sombra, pois parte do princípio de que existe um sentido para tudo o que ocorre na vida de todos nós. E esse sentido é a realização de um propósito maior em nossa existência. Avançando na psicoterapia nos aproximamos cada vez mais de nossa essência, do nosso sagrado trazendo a realização pessoal, um sentimento de unidade com a vida.
Jung por meio de seus estudos nos trouxe o exercício analítico que ultrapassa a função paliativa: ao promover o autoconhecimento e a expansão da consciência. Ao olhar para dentro de si, você se percebe muito maior do que a consciência era capaz de imaginar. "Sua visão se tornará clara apenas quando você puder olhar dentro do seu coração. Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro acorda". Se liberta!
O Mito da Caverna faz referência ao processo de individuação quando nos mostra a necessidade de sair do mundo ilusório em busca de uma consciência maior a respeito de si e do mundo.
BIBLIOGRAFIA:
CHEVALIER, J. e Gheerbrant, A. Dicionário de símbolos. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2008.
JUNG, C. G. Fundamentos de psicologia analítica. Petrópolis: Vozes, 1999.
JUNG, C. G. OC - Vol. 6. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, C. G. OC - Vol. 7/1. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2014.
JUNG, C. G. OC - Vol. 8/2. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, C. G. OC - Vol. 9/1. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014.
PLATÃO. O mito da caverna. São Paulo: Edipro, 2015.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma : uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2006.
BRASÍLIA
07/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário