sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

MOVIMENTOS DA ENERGIA PSÍQUICA: A REGRESSÃO



Por:
Marcos de Araujo Nogueira

Ressoa em mim uma frase que veio à lume em conversa com colegas psicoterapeutas: a Obra é maior que a vida. A frase imediatamente me catapultou para a nau de Argos e quando me dei conta estava nos braços de Pessoa: navegar é preciso, viver não é preciso.

Senti na frase parte do drama de minha adolescência. Me empertigava ante ao que eu chamava de imperativo do autodesenvolvimento. Sentia esse imperativo como uma força a impulsionar a vida para níveis mais complexos de organização. Perceber tal impulso me trazia uma imensa culpa, uma vez que eu mal havia iniciado meu labor e já arriscava planos de aposentadoria. Alimentava uma ideia de quietude e contemplação alicerçadas pela lei do mínimo esforço.


A frase A Obra é maior que a vida se uniu, em mim, com outra frase que me é muito cara: Torna-te quem Tu és, bela frase retirada do livro Ecce Homo. Nietzsche não a diz no sentido essencialista, mas no sentido do esforço e do eterno lapidar da vontade (GHIRALDELLI, 2017). É no caminho de se tornar quem se é que a Obra é construída. O self, tecelão de caminhos, parece não tolerar que se ignore as demandas internas de autorrealização. É por isso que a Obra é maior que a vida: o desviar-se para um caminho de esterilidade e unilateralidade artificiais geram um quadro de sintomas cujo telos leva o sujeito a uma paralisação e angústia e, se contar com a bênção da deusa Tique, a um posterior escrutínio da própria existência. O sofrimento e a dor vergam a mais rígida estrutura e, caso haja o desejo de que a vida flua e o represamento libidinal cesse, é preciso curvar-se sobre o problema, realizando o sentido essencial e etimológico da palavra reflexão:

O termo latino reflexio significa um curvar-se, inclinar-se para trás, e usado psicologicamente indicaria o fato de o processo reflexivo que canaliza o estímulo para dentro da corrente instintiva ser interrompido pelo psiquificação. Devido à interferência da reflexão, os processos psíquicos exercem uma atração sobre o impulso a agir, produzido pelo estímulo; por isso o estímulo é desviado para uma atividade endopsíquica, antes de descarregar-se no mundo exterior. A reflexio é um voltar-se para dentro, tendo resultado que, em vez de uma reação instintiva, surja uma sucessão de conteúdo ou estados, que podemos chamar reflexão ou consideração. Assim a compulsividade é substituída por uma certa liberdade, e a previsibilidade por uma relativa imprevisibilidade. (JUNG, 1984, VOL 8\2, par. 241)
Nesse ponto da vida em que tudo carece de sentido o inacabamento da natureza obriga aquele que luta para não ser devorado pelo seu próprio enigma a se munir com o cinzel da arte e reconstruir o seu sentido de vida. Há no ser humano “o sentimento íntimo do que deveria ser e do que pode ser. Desviar-se de tal pressentimento significa extravio, erro e doença” (JUNG, 1979, par. 311). Quando se adentra a noite escura da alma o coração já está em chamas; não é mero capricho ouvi-lo, mas pura intuição de que neste ato de escuta e entrega pode residir a salvação. Aqui confirmamos a asserção aristotélica que compreende o ser humano comouma criatura que não busca simplesmente o prazer, mas antes de tudo fugirda dor.

Quando a alegria abandona os quadros rotineiros da existência e o corpo executa um concerto cujo sentido lhe escapa, temos sinais de que a energia psíquica se recolheu do mundo externo, obrigando aquele que padece a realizar a sua catábase. De seu sucesso depende sua vida e todo o sentido que ela pode conter. Àqueles que se paralisam, crispados e perdidos diante das encruzilhadas da existência, dedicamos os seguintes versos de São João da Cruz:
Onde é que te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo fugiste,
Havendo-me ferido;
Saí, por ti clamando, e eras já ido.
Pastores que subirdes
Além, pelas malhadas, ao Outeiro,
Se, porventura, virdes
Aquele a quem mais quero,
Dizei-lhe que adoeço, peno e morro.
Buscando meus amores,
Irei por estes montes e ribeiras;
Não colherei as flores,
Nem temerei as feras,
E passarei os fortes e fronteiras

(CÂNTICO ESPIRITUAL I, CANÇÕES ENTRE A ALMA E O ESPOSO. SÃO JOÃO

DA CRUZ, 2016)
Quando o processo de adaptação falha, na mesma medida em que o mundo externo perde a sua força o mundo interno se agita com a carga de energia recebida:
Se nos recordarmos agora de que a causa do represamento da libido era o malogro da atitude consciente, compreenderemos que germes valiosos são ativados pela regressão: eles contêm, com efeito, os elementos necessários para aquela outra função excluída pela atitude consciente e que estaria capacitada para complementar ou substituir eficazmente a atitude consciente que não produz resultado” (JUNG, 1984, VOL 8, par. 65)
A tendência é que essa energia introjetada alimente fantasias de caráter infantil, que provavelmente revelarão germes de comportamentos que contribuíram para o fracasso adaptativo. A regressão da energia psíquica proporciona uma oportunidade de compreensão das dificuldades que fizeram a libido refluir ou, pelo menos, seria bom se isso fosse possível. No recuo da libido que caracteriza a regressão há a oportunidade de se reunir forças para transpor um obstáculo. Esse acréscimo de energia investido na resolução de problemas é produto da compreensão e dissolução de determinados complexos. É importante lembrar que a força de vontade é antes de mais nada um excedente energético. Esta é uma descrição ideal da dinâmica libidinal: a energia psíquica regride e posteriormente progride em uma adaptação mais adequada às demandas externas e internas. Segundo Jung: 

Ao ativar um fator inconsciente, a regressão confronta a consciência com o problema da psique, diferente do problema da adaptação exterior. É natural que a consciência resista em aceitar os conteúdos regressivos, embora seja, afinal, obrigada a se submeter aos valores regressivos, por ser impossível a progressão, ou, dito em outros termos: a regressão conduz à necessidade de adaptação à alma, à adaptação ao mundo interior da psique. (JUNG, 1984, VOL 8, par. 66)
É natural que ao se deparar com dificuldades adaptativas haja a tendência de um retorno a um estado de menor desamparo, à segurança materna. Jung diz que
 “causalmente a regressão é condicionada pela “fixação na mãe”, p. exemplo. Finalisticamente, entretanto, é a libido que regride à imago da mãe, para aí descobrir as associações da memória através das quais a evolução pode passar de um sistema sexual, p.exemplo, para um sistema espiritual” (JUNG, 1984, VOL 8, par. 44). A libido que retorna à imagem da mãe não visa satisfazer pulsões eróticas, mas buscar um renascimento espiritual, ou, em outras palavras, a transformação da personalidade. É por isso que é dito: o primeiro batismo se faz com sangue e o segundo é feito através da água. Analisada psicologicamente, a frase do evangelho de João se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de
Deus – se harmoniza com essa compreensão da dinâmica da energia psíquica conforme descrita aqui. Ainda sobre a regressão:
Quando Jonas foi engolido pela baleia, ele não estava simplesmente preso dentro do ventre do monstro, mas, como diz PARACELSO, viu ali “enormes mistérios”. (...) Nas trevas do inconsciente está escondido um tesouro, justamente a “preciosidade difícil de ser alcançada”, que em nosso texto, como em muitas outras ocasiões, é caracterizado como pérola, ou como “mistério” em PARACELSO, o que significa um fascinosum par excellence. Estas possibilidades de uma vida e um caminhar “espirituais” ou “simbólicos” constituem o alvo final, mas inconsciente, da regressão. Para que a libido em regressão não fique presa na materialidade materna (na mãe corporal) os símbolos acodem como expressão, ponte e indicação. O dilema por certo nunca foi formulado mais claramente do que no diálogo de Nicodemos: de um lado, a impossibilidade de penetrar no ventre materno, de outro lado, o renascimento a partir de “água e do espírito”. O herói é herói porque em qualquer dificuldade da vida vê a resistência contra a meta proibida e luta contra esta resistência com toda a nostalgia que aspira pela preciosidade difícil ou inalcançável; uma nostalgia que paralisa e mata o homem comum. (JUNG, 1986, VOL 5, par. 509 e 510)

Há, notoriamente, muitos riscos inerentes a esse movimento da libido. Por exemplo, há o risco de que o indivíduo fique na situação mais tempo do que seria ideal: o risco de sucumbir à nostalgia. Talvez seja nesse sucumbir à nostalgia que o conceito de regressão junguiano se assemelhe à noção negativa da regressão conforme vista pela psicanálise em seus primórdios, pois hoje esta já compreende que a regressão pode estar à serviço do desenvolvimento egóico (SAMUELS, 1989). É importante lembrar que a descrição ideal da dinâmica libidinal funciona como um indicador de uma direção, e nunca deve ser confundido com o possível ou com o necessário para uma determinada pessoa em um dado contexto. É certo que a alma precisa de tempo, mas também é certo que o mundo externo não arrefece sua pressão e exige uma resposta:

Se o mundo exterior não passa de um fantasma, para que o esforço de estabelecer um complicado sistema de relação e adaptação a ele? Paralelamente, considerando-se as realidades interiores “mera fantasia”, ninguém reconhecerá nas manifestações da anima outra coisa além de tolices e fraquezas. Mas se for reconhecido o fato de que o mundo está fora e dentro, e que portanto, a realidade vem tanto do interior como do exterior, logicamente dever-se-á considerar os transtornos e inconvenientes que surgem do íntimo como os sintomas de uma adaptação defeituosa às condições do mundo interior. (JUNG, 1978, VOL 7/2, par. 319)

Uma conciliação adequada entre as demandas internas e externas resulta em uma atitude adequada diante da vida. É essa atitude que proporciona um novo redirecionamento da libido. Enquanto essa conciliação não é possível o trabalho interior continua. Nessa etapa é esperado que o indivíduo entre em contato de uma forma mais consciente com os seus conflitos e de sua participação em sua gênese. O resultado desse trabalho é a compreensão de que habita no próprio indivíduo aspectos de sua personalidade tão dissociados que parecem se comportar como entidades à parte, e que estas procuram se fazer ouvir (no mais das vezes esse encontro se inicia através da formação de sintomas). O ato de deixar falar essas partes antes desconhecidas, o que só pode ser possível a partir de um posicionamento honesto do Eu neste diálogo, revela que dentro do ser humano há caminhos e atitudes antagônicas, vidas vividas e vidas não vividas que são aparentemente irreconciliáveis. Dessa tensão gerada pelo foco consciente sobre essas questões pode surgir uma ideia conciliadora, um símbolo cuja força atrativa pode mobilizar novamente a energia psíquica em uma nova direção. Esse símbolo reconciliador pode levar o sujeito a uma nova atitude diante da existência.
Espero que a partir das reflexões acima possamos ter uma ideia do bailado da libido diante da vida. Nesse arranjo singular que nunca deixa de surpreender por sua potência criativa. Essa dinâmica visa o alargamento da alma, pois, como ensina Guimarães Rosa, o rio não quer simplesmente chegar no mar, mas tornar-se mais largo e profundo. Gostaria de terminar esse texto da mesma forma como o começamos, com alguns versos de SãoJoão da Cruz. Na poesia inicial, retirada da primeira parte do Cântico Espiritual, percebemos o desamparo da alma; nesta poesia final, retirada da Noite Escura, o regozijo do encontro:

Canções da Alma
Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada, Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.

Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada, Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão velada,
Já minha casa estando sossegada.

Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via, Nem eu olhava coisa.
Sem outra luz nem guia
Além dessa que no coração me ardia.

Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia




Oh! Noite que me guiaste,
Oh! Noite mais amável que a alvorada Oh! Noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!

Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava, Quedou-se adormecido,
E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque refrescava.

Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava, Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

Esquecida, quedei-me,
O rosto inclinado sobre o Amado; Tudo cessou. Deixei-me, Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado
Referências Bibliográficas
Jung, C. G. Símbolos da Transformação, Vol 5
----------- Vol 7\2
----------- Vol 8/2
GHIRALDELLI, 2017.Torna-te quem tués.http://ghiraldelli.pro.br/filosofia São João da Cruz
Obras completas Instituto Junguiano de Brasília Ensaio primeiro semestre de 2017

Nenhum comentário:

Postar um comentário