Cultivar Alma -
uma perspectiva sobre o processo transferencial na abordagem junguiana
Por: Karen Geisel Domingues
Surpreendo-me ao constatar a variedade de interpretações dadas aos fenômenos sofridos por terapeutas e clientes durante um atendimento psicológico – encontros e desencontros entre falas e escutas, sentimentos que vão e sentimentos que voltam entre pessoas que ensaiam a compreensão do fenômeno do Ser. E nesse movimento de intenções verbais e não-verbais, emoções e crenças avolumam-se e, por vezes, dificultam a comunicação oral, tornando-a quase insustentável por toar como hybris, o desejo de alcançar o indizível à qualidade humana.
No Temenos, resolvi observar com mais cuidado o nascimento da vida anímica, a partir da relação Eu-Tu (BUBER in JACOBY, 1992), ou seja, os processos transferenciais que surgem a partir do momento em que duas almas se encontram com a intenção de fazer desabrochar a vida mais profunda da própria vida – a essência da criação, o Amor. Pois, quando a existência parece estar estagnada em suas possibilidades de expressão no sujeito, a capacidade de tocar a alma do cliente pelo terapeuta vem como arte genuína.
Para Stein (1978), a relação amorosa do terapeuta com sua própria alma trará possivelmente o tom para o encontro sagrado, onde duas pessoas tentam fazer brotar o amor e confiança, um dia perdidos para um deles. Edinger (1998) reafirma a premissa junguiana quando explica que, em certa medida, a consciência de um indivíduo que se encontra relacionado com o Si-mesmo parece ser contagiosa e tende a multiplicar-se em outras. De certa forma, o afeto desenvolvido na experiência individual anímica do terapeuta acaba por provocar o amor e interesse entre dois indivíduos no setting.
Em ondulações crescentes, Eros passa a provocar uma dis-tensão natural do desejo e amor antes contidos, e que agora se expandem a partir da vida interior enriquecida durante o processo terapêutico para a relação Eu-Tu maior: a expressão do sujeito e sua realização no mundo.
No belíssimo processo de fazer alma, é natural que se constelem complexidades múltiplas ao redor do resgate do Amor. Nesses momentos densos, o sujeito em análise por vezes apresenta a criança frustrada em seu íntimo: aquela que gostaria de engolir completamente o analista, ao fazer cenas e exigências infantis, então, o adulto-criança acaba, por vezes, compensando esse movimento ao mostrar-se muito correto, sabendo que se admitir suas exigências, o analista naturalmente revidará, algo que ele já experimentou com frequência na vida, quando depois de esconder seus sentimentos, a criança magoada retirou-se uma vez mais, amargamente frustrada (VON FRANZ, 1999, p. 88).
Então, como sustentar o Temenos onde a criança voraz possa surgir, confiar, amar e desenvolver-se plenamente servindo-se dos processos transferenciais? Afinal, o que se tem frente a frente no momento presente não são mais uma criança e um adulto, mas dois adultos que ensaiam uma relação humana genuína capaz de gerar espaços criativos para expressão da vida. Nesse momento de concepção de novas possibilidades, há cuidados necessários para reeducação desse indivíduo que necessita participar com todo seu ser. Agora, ele necessita representar em si seu pai e sua mãe que deverão entrar em conjunctio e preparar o nascimento para o novo ser: uma nova manifestação da vida capaz de representá-lo como expressão do Si-mesmo no mundo. Entretanto antes dele apresentar e sentir em si aspectos do masculino e feminino maduros suficientes para um casamento, o sujeito provavelmente sentirá necessidade de experimentá-los em seu terapeuta a fim de introjetar adequadamente experiências reparadoras de Lei e de Amor, ou seja, experiências associadas a Logos e Eros.
William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)
Jung (1999, p. 23) considera o processo de assimilação como sendo a interpenetração recíproca de conteúdos conscientes e inconscientes, análogos ao devorar da criança faminta, à atividade sexual do adulto e à introjeção, em níveis psicológicos. Para Jung, a assimilação nunca ocorre somente de um isto ou aquilo, mas sempre de um isto E aquilo, podendo surgir como primeiro movimento instintual a atividade antropofágica e voraz do Eu tentando devorar o outro, representado pelo terapeuta. Em verdade, o devorar-assimilar parece referir-se à profunda necessidade de fazer e alimentar a alma, àquilo que falta ao sujeito para completar-se psiquicamente.
Ingênuo é pensar que o processo ocorre de maneira neutra e suave sem intensos impulsos da libido que cobra realização imediata em níveis primitivos, ou seja, o prazer de um organismo fisiológico maduro para a atividade no mundo. Destarte, nos movimentos de introjeção e amadurecimento dos aspectos da personalidade, o processo de transferência surge na abordagem analítica como experiência de reparação de vivências pessoais incompletas que não preencheram adequadamente a experiência arquetípica primordial. Nesse tipo de relação transferencial-contratransferencial, com frequência, o conteúdo do inconsciente coletivo irrompe numa forma de pulsão instintiva, seja poder ou sexo. Em outras palavras, a irrupção da libido do inconsciente apresenta-se num nível relativamente baixo ou animal. Desta forma, os impulsos no sentido de algo que deve ser feito ou conhecido manifestam-se primeiramente na forma de reações físicas, se não puderem atingir diretamente a consciência (VON FRANZ, 1999). O terapeuta, consequentemente, apresenta-se como continente capaz de sustentar a expressão da vida instintiva primitiva para que esta possa ser expressa, simbolizada e desenvolver-se dentro de padrões saudáveis e estáveis para seu cliente.
Assim como uma mãe sustenta o filho em seus braços enquanto o alimenta e apresenta-o ao mundo, o terapeuta sustenta o início da vida que surge no indivíduo, auxiliando-o nos ensaios do engatinhar no mundo interior: dar nome às coisas desconhecidas, sonhar seus sonhos esquecidos, perceber seus desejos represados e amordaçados no porão da alma. Ele media a entrada do cliente em seu próprio mundo anímico, assim como, uma vez alguém lhe iniciou à vida exterior. Para Stein (1978), devido à natureza do receptáculo analítico e, a partir do genuíno interesse do terapeuta, a alma desprezada começa a vibrar e aventurar-se para fora de sua câmara escondida. Em suas primeiras manifestações, provoca calor e sentimento, que normalmente surgem dirigidos para o analista, que passa a ser sentido como alguém que possui e contem a substância que o sujeito precisa para se completar - o Amor, a essência necessária tanto para união interna como para união com o outro. Desta sorte, o terapeuta funciona como veículo e vínculo inicial entre o cliente e sua alma.
De certa maneira, para Stein (ibidem), em sua obra, Incesto e Amor Humano – a traição da alma na psicoterapia, a alma engana-se ao ver-se refletida no outro, em verdade o Eu e o Tu fundem-se num primeiro momento de indiscriminação, assim como a mãe e o bebê que se reconhecem um no outro. Os processos transferenciais são como um espelho, onde o sujeito enxerga-se no terapeuta e apaixona-se, em verdade por ele mesmo, já, em sua visão futura, mais profunda e abrangente sobre si próprio.
Tem-se, então, um trabalho a ser construído em via dupla. Se por um lado o cliente passa a vivenciar seu próprio ser a partir de projeções no terapeuta com posterior análise e síntese dos aspectos sombrios - considerado o desenvolvimento de seu relacionamento com seu mundo interior; por outro lado, as relações Eu-Tu também serão enriquecidas, pois a partir da profundidade desenvolvida consigo mesmo haverá, na mesma proporção, a profundidade em suas outras relações. Desta forma, prepara-se o caminho da multiplicatio, quando o terapeuta provoca em seu cliente a abrangência de cultivo de alma antes somente experiência de sua personalidade e encaminha o sujeito a confiar e aprofundar em suas relações para além do setting terapêutico.
A almejada conjunctio, união de pares de opostos, representa a realização do sujeito tendo agora em si: pai e mãe introjetados e maduros, relacionamento desenvolvido entre consciente e inconsciente e o princípio de Logos e Eros em harmonia, consequentemente, a realização do casamento sagrado e a concepção do ser que se produzirá a partir daí. Novas perspectivas de vida abrem-se ao analisando, logo, quem está em gestação é um novo ser, pronto para a idade de outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos (BARTHES, 2007). A este momento denomina-se Recriação.
Para Jung (1971/1999), o encontro analítico passa a ser um desafio, uma oportunidade de haver um futuro relacionamento - entrar em contato com a alma do mundo, representada pelo terapeuta como uma perspectiva mais abrangente de vida. Pode-se considerar igualmente como a criação de um sentido de profundo respeito e amor pelas possibilidades da existência e pela compreensão de finitude e limitação da consciência frente aos desígnios do Inconsciente.
Aprende-se, então, a reconhecer o não-saber ao observar-se os fenômenos da Vida e propor questões, e com a onipotência criativa das crianças, criar novos sentidos a antigas experiências, assim como, criar novas experiências através de antigos sentidos. No espaço vazio, antes, somente sentido como vazio de sentido e sofrimento da alma; agora, o sujeito avança para além das convenções e saberes instituídos, pois como Hillman afirma (1984, p.248), a lacuna do vazio não deve ser superada, preenchida ou completada. Ou antes, o vazio é a plenitude, de modo que esta lacuna se torne o local de reflexão, o local da consciência psíquica, e ofereça o espaço para portar e conter; é a própria psique.
A partir das relações transferenciais e de um Temenos sagrado à alma, aprende-se a fazer cessar a excessiva força da consciência e abrir espaço à relação com o não-saber, forma de conhecimento do Inconsciente. Recriar-se, na terapia, a abertura proposta pelo paradigma dos opostos complementares – o espelho não é mais somente o outro, o espelho agora ocorre no laço que existe entre o Eu, o Tu e o não-saber – a própria experiência da Vida. Então...
Seja Paciente
Quero lhe implorar para que seja paciente com tudo o que não está
resolvido em seu coração
e tente amar as perguntas como quartos trancados
e como livros escritos em língua estrangeira.
Não procure respostas que não podem ser dadas
porque não seria capaz de vivê-las.
E a questão é viver tudo.
Viva as perguntas agora.
Talvez assim, gradualmente, você sem perceber, viverá a resposta num dia
distante.
Rainer Maria Rilke
Bibliografia
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007.
EDINGER, Edward. Anatomia da Psique. O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 1998.
HILLMAN, James. O mito da análise. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1984. JACOBY, Mario. O encontro analítico. São Paulo: Cultrix, 1992.
JUNGhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Gustav_Jung, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Petrópolis: Vozes, 1971/1999. STEIN, Robert. Incesto e amor humano. A traição da alma na psicoterapia. São Paulo: Edições Símbolo, 1978.
VON FRANZ, Marie Louise. Alquimia. Introdução ao simbolismo e à psicologia. São Paulo: Cultrix, 1999.
Grande texto!!!! Que alimenta nossa alma, seja como terapeutas ou pacientes. Parabéns Karen!!!
ResponderExcluirGrande texto!!!! Que alimenta nossa alma, seja como terapeutas ou pacientes. Parabéns Karen!!!
ResponderExcluirParabéns, Karen!
ResponderExcluirEsse texto nos mostra o quão é importante o trabalho do terapeuta e nos inspira a acreditar que é possível, sim resgatar do amor e a confiança nas mais variadas modalidades de relacionamento.
Karen! Que profundo e amoroso o teu texto. Me senti tocada, de verdade. Tua sensibilidade a estas importantíssimas questões, do nosso cotidiano de analistas e analisandos revelam tua alma cuidadosa. Bjo grande
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