Jogue como uma criança
Com um ar melancólico, entrou devagar na sala. Não me olhou e, em silêncio sepulcral, sentou-se. Aquilo me emudeceu. Mexeu em algumas canetas e lápis de cor, ficou ali longos minutos entregando um lápis vermelho de uma mão à outra. Parecia que queria fazer uma ponte entre elas, mas aquele remexer nervoso não deixava. O lápis, que não parava quieto, o hipnotizava em seu movimento de vai-e-vem. De repente saiu daquele mundo muito particular e me olhou. Senti pela primeira vez, naquele garoto de 6 anos, um olhar sem a vivacidade de uma criança. E sussurrando, disse-me:
- Estou morrendo de triste.
E me perguntou se eu já havia ficado triste alguma vez, ao que respondi, sem pronúncias, balançado a cabeça para cima e para baixo.
Jogou o lápis na mesa e ficou brincando de colocar o dedo na boca de um bicho de cerâmica que havia lá. Era uma Bernuça, uma figura folclórica de Santa Catarina que, reza a sábia mitologia da região, engole pessoas. Mas estava engolindo apenas o seu pequeno dedo.
- Me conta de novo aquela história que o menino mata o gigante?! Me perguntou com uma sonoridade brincalhona, quase como um cântico.
De vez em quando, me pedia para contar aquele conto de Joseph Jacobs e sempre abria um grande sorriso na hora que o menino subia o gigantesco pé de feijão. Então, fui lendo e lendo e, na hora que a vaca estava prestes a ser trocada pelo punhado de feijões, ele repentinamente me perguntou:
- Os gatos também vão para o céu? Eles têm um céu só deles?
Naquele dia, Miguel (eis que agora apresento o garoto a vocês!) havia perdido seu gato, que misteriosamente tinha morrido. Sua mãe já havia me ligado mais cedo e me dito que ele não parava de chorar desde que soubera que o gato tinha ido para o céu.
- Antônio, eles tem um céu só deles? Me perguntou de novo.
Não sabia o que dizer para o pequeno garoto diante daquelas perguntas tão misteriosas. Me aproximei dele e disse-lhe que havia muitos pés de feijão que ligavam o céu à terra. Apontei para o meu coração e depois para o dele, e disse-lhe que as raízes dos pés de feijão estavam nos nossos corações, que nos ligavam, aqui na terra, aos que estavam no céu. Ele sorriu, como se compreendesse profundamente esse dito tão metafórico, e me deu um abraço.
- Então... vamos brincar com a caixa de areia? Lhe respondi, sem titubear que sim, e prontamente trouxe uma das caixas até nós.
Ele pegou um boneco de uma vaca e outro de um gato.
Enterrou, com certa ligeireza, a vaca. Parecia como se fosse algo sem sentimento. Simplesmente enterrou. Com o gato, brincou com a superfície da areia por alguns minutos, acariciando-a com os dedos e, aos poucos, foi abrindo um espaço na areia como se tivesse empurrando para os seus lados algo muito pesado.
- Que pesado, hein Miguel? Disse a ele que, sem demoras, me respondeu: – estou até suando... precisa de força...
- Quer ajuda? Perguntei-lhe. Me respondeu, sem pestanejar: – fique aí sentado... pode ficar só olhando...
Continuou aqueles movimentos e cada vez mais devagar ia parando suas pequenas mãozinhas. Seus olhos fitavam o trabalho que fazia como um artista que contempla sua obra quase acabada. Pegou o gato e o ninou nos braços. Estava absorto por aquela imagem... e eu era testemunha disso.
- Antônio, vamos dar tchau para ele?! – Sim, Miguel, vamos. Respondi.
E assim fizemos durante o todo o tempo que a areia ia encobrindo o gato... até que ele se foi por completo. Miguel cobriu a caixa de areia com sua tampa de madeira, e perguntou se podíamos seguir brincando.
- sim, claro! Do quê? Respondi.
Disse ele, meio que recuando: - esquecemos a vaquinha! - Vou tirá-la de lá.
Falou, convicto, e voltou à caixa. Desenterrou a vaquinha que, com tanta pressa, havia depositado no fundo da areia. E eu lhe disse que, ele tinha feito diferente do Joao do conto. Que ele permanecia com sua vaquinha... com sua riqueza. Ela tinha ficado ali debaixo da areia, por uns instantes, enquanto ele se despedia do gatinho. Mas ele não esquecia dela, podia sempre busca-la.
- Antônio, você sabia que minha avó tem umas vaquinhas? Ela me disse que nunca trocaria elas por feijões.
Ao dizer isso, saiu correndo, foi até o armário de jogos e mexeu lá por um tempo. Conversava consigo mesmo.
-Ah, vou pegar esse do cai-não-cai... ah, e esse do pirata?!
De onde estava podia sentir o entusiasmo com que Miguel buscava algo para brincar. Era um alvoroço! Mas, em um relâmpago de um segundo, disse:
- Escolhi, escolhi!
Chegou até a mim e pressionava o jogo contra seu peito, mexendo o corpo de um lado para o outro, como se dançasse.
- Adivinha, Antônio, adivinha o que é! Disse, assim meio que sorrindo.
- não tenho ideia, Miguel! O que poderá ser?! O que será que você tanto esconde? Respondi.
Sacou o jogo rapidamente e todas aquelas letras me foram mostradas sem piedade: j-o-g-o d-a v-i-d-a. Senti uma petrificação, como se uma medusa matasse algo em mim. Falávamos e ritualizávamos a morte havia pouco e, como se algo virasse a mesa, passamos para a vida.
Fiquei comigo por alguns segundos, era uma solidão fugaz que precisava respirar e, por um instante, compreendi, no coração, a necessidade da morte como algo da vida. A necessidade de que algumas coisas possam ir para que a mão de uma criança desenterre algo que viceja.
Naquele dia, Miguel se divertiu com o jogo da vida como nunca. Casou-se, teve filhos, escolheu carros e cores. Sorriu, frustrou-se, xingou, pulou... nossa, quanta vida!
Ao final, lhe disse que havia gostado muito de brincar do jogo da vida e que talvez a vida da gente fosse um grande jogo, uma brincadeira. Foi então que aquele pequeno, do fundo de sua alma e com aquela voz tão de menino, apenas me disse:
- E eu sei jogar melhor que você.
E assim terminou aquela sessão.
Hoje, querido e amado Miguel, quero te agradecer, porque sinto que você joga realmente melhor. O jogo da vida nas suas mãos, querido menino, é de muita vitalidade!
Antônio Pereira Rabelo é Analista Junguiano em processo de formação (IJBsB),
Psicólogo (UnB), Mestre em Psicologia Clínica e Cultura, com foco em
Psicanálise e Processos de Subjetivação (UnB); Especialista em
Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância (UFF);
Especialista em Psicologia Clínica Junguiana (IJBsB); Professor,
orientador e supervisor em Ciência e Clínica Psicológica; Escritor
(participação em obras com temáticas ligadas à Psicologia Analítica e à
Psicanálise); e Analista Judiciário no Supremo Tribunal Federal. Além
disso, participou de vários congressos, sendo o mais recente o X
Congreso Internacional y XV Nacional de Psicología Clínica (2017), em
que apresentou, em simpósio, o tema “O processo de escrita como
catalisador da individuação”.