Por : Alcione Nascimento Tinôco
Tutora: Renata Whitaker
Brasília
Fevereiro, 2017
O ser humano, em seus primórdios, ao deparar-se com os fenômenos da natureza que não compreendia, imaginou-os deuses e os adorou e temeu. Expressou essa adoração, seus medos, seus hábitos, seus amores e suas vitórias por meio de desenhos nas paredes das cavernas, registros da sua existência e da sua imaginação. Como disse Harari (2015) sobre a marca de uma mão na parede de uma caverna, na França: “Alguém tentou dizer: Eu estive aqui!” 1. E o fez por meio de uma imagem.
Ao abordar o valor das imagens e dos símbolos, Eliade (2002, p. 13) afirma: “Na realidade, se existe uma solidariedade total do gênero humano, ela só pode ser sentida e ‘atuada’ no nível das Imagens...” Assim, a imagem atravessa o tempo, toca a sensibilidade dos seres humanos das mais variadas culturas e, por meio de uma espécie de comunicação primordial, transmite uma ideia mesmo quando não há palavras.
Pintura Rupestre (Parque Nacional da Serra da Capivara)
No pensamento junguiano, a imagem ocupa lugar de grande importância. Ela está presente nos símbolos oníricos; na manifestação personificada de complexos e arquétipos; na simbologia alquímica tomada como metáfora do processo da individuação, a exemplo dos emblemas alquímicos encontrados no Livro de Lambspring; no Rosarium Philosophorum, representativo do fenômeno transferencial e, por fim, na imaginação ativa, assunto deste artigo. Nesta última, o ego tem a oportunidade de interagir com personagens e de transitar, conscientemente, nos cenários produzidos pelo inconsciente, o que traz benefícios psíquicos e físicos, decorrentes da integração de conteúdos. (Edinger, 2006; Jung, 2012/1954, vols. 14/1 e 14/2; Jung, 2013/1928; Raff, 2002)
Ao buscar descrever as etapas da individuação, Jung (citado por Edinger, 2006) encontrou na descrição das operações alquímicas o simbolismo que lhe possibilitou explicar o processo por inteiro, o que não conseguia por meio de relatos de casos, os quais ele considerava sempre incompletos. Para Edinger (2006, p. 22), a alquimia possibilitou “uma espécie de anatomia da individuação”.
Da mesma forma, as imagens dos emblemas do Livro de Lamspring, escrito por um alquimista desconhecido entre os séculos XVI e XVII, possibilitaram a Gerald Dorn, discípulo de Paracelso, uma visão da obra alquímica da individuação. Jung comentou com profundidade esse material repleto de personagens e cenários representativos dos processos psíquicos (Raff, 2002).
O conhecimento dessa simbologia permite ao analista junguiano compreender a alma do analisando, olhar suas paisagens internas e conhecer aqueles que as habitam para perceber o estado da sua psique. Nesse processo, dá-se o convite à vivência da imaginação ativa, um dos três procedimentos que Jung criou para a abordagem do inconsciente (Tonietto & Fialho, 2005), ao lado do teste de associação de palavras e da análise dos sonhos.
Jung (2013/1954) afirma a necessidade da imaginação ativa para pacientes cuja análise haja constelado os opostos de tal forma que tenha tornado necessário compor a personalidade, unir as partes. Isso ocorre quando o paciente torna-se consciente da tensão entre os opostos psíquicos (consciência e inconsciente). Essa tensão evidencia-se em sonhos, em atitudes e imagens psíquicas chegando a parecer insolúvel. Ele (Jung, 2013/1954, vol. 14/2, p. 350) ainda ensina como proceder:
“(...) tome-se o inconsciente numa das formas mais à mão, como, por exemplo, uma fantasia espontânea, um sonho, uma disposição irracional de ânimo, um afeto ou algo desse tipo, e opere-se então com isso, isto é, preste-se atenção especial a essa matéria, concentrando-se nela e observando objetivamente as modificações dela. (...) Dessa maneira tem-se a certeza de que de modo algum se interveio com arbitrariedade consciente, mas que sempre se deu curso livre ao inconsciente.”
Também Johnson (1986) buscou descrever o processo da imaginação ativa, concluindo que ela pode seguir 4 passos: convidar o inconsciente; dialogar e vivenciar; acrescentar o elemento ético dos valores; concretizar pelo ritual físico. O primeiro consiste em convidar as personagens do inconsciente a virem à consciência e afastar a mente do mundo externo, direcionando a atenção a um lugar do mundo interior no qual algo acontecerá. Para isso, é preciso esperar, contemplar sem interferir na cena. Uma vez diante de uma figura do inconsciente, pode-se perguntar, por exemplo: quem é ela ou o que deseja. Ou ainda, o que tem a dizer. O ponto de partida pode ser uma cena de sonho, uma fantasia, um lugar imaginário ou a personificação de sentimentos ou mesmo de sintomas. O diálogo, então, se inicia e nele é necessária a participação de quem imagina com todo a sua carga emocional e sentimental sem que haja uma tentativa de controlar os interlocutores imaginários. Para isso, também é preciso exercitar a capacidade de ouvir as personagens mais incômodas como se elas trouxessem uma mensagem sábia, embora passível de questionamento. E esse questionamento é feito a partir dos valores de quem imagina, pois as mensagens recebidas nesses diálogos interiores não devem ser tomadas como corretas sem que passem pelo crivo ético. Da mesma forma, o maior valor da experiência imaginativa encontra-se na reavaliação dos próprios valores diante das mensagens recebidas. Por fim, após a imaginação ativa, deve-se fazer algo, realizar algum ritual para integrar a experiência à realidade cotidiana, desde que isso não signifique projeção sobre outras pessoas ou atuação dos próprios conflitos.
A imaginação ativa difere da fantasia passiva porque coloca o ego em atividade consciente na qual ele interage com as imagens do inconsciente, chegando muitas vezes a discordar do que elas lhe dizem e envolvendo-se emocionalmente nessa experiência simbólica com tanta intensidade quanto se envolveria numa situação da vida física (Raff, 2002).
Imaginar, então, é revisitar as cenas do sonho ou da fantasia e permitir às imagens do inconsciente (em última instância, quais não o são?) o seu curso de ação. Observá-las. Questioná-las. Ouvi-las. Interagir com elas. Reconhecê-las em sua autonomia em relação à consciência. Adentrar o mundo em que elas transitam e com elas aprender, com elas abrir-se à transformação e compreender o quanto o mundo físico e o mundo anímico se interpenetram. Essa aventura é o trabalho interior.
É a realidade dessa interpenetração que se evidencia na pesquisa realizada pela psicóloga Sônia Lyra (2013), com a finalidade de avaliar o efeito da técnica da imaginação ativa no tratamento de bruxismo. Os resultados apontam para a possibilidade de cura. A pesquisadora explica (p. 11):
“Quando se pratica a Imaginação Ativa as coisas mudam na psique, os sintomas são alterados, os desequilíbrios entre as atitudes do ego e os valores do inconsciente são remediados e os opostos complementares podem ser reunidos, porque a função específica do símbolo é a transformação da energia psíquica.”
Também Epstein (1990) concluiu que imaginação pode promover a cura do corpo e ilustra sua afirmativa relatando a cura do câncer do fígado de um de seus amigos, em 1982, apesar de um prognóstico pessimista dos médicos mesmo que ele se submetesse à quimioterapia. Ele utilizou as imagens mentais e a quimioterapia por dois anos. Depois de 1984, continuou apenas a utilizar as imagens e no momento em que o livro foi escrito, ele era “o único sobrevivente conhecido deste tipo de condição registrado no Sloan-Kettering Memorial Câncer Center, em Nova York” (p. 15 ).
O conhecimento da eficácia da imaginação ativa para a cura de doenças físicas já se encontrava nos escritos do alquimista Paracelso (citado por Raff, 2002), para quem a imaginação diferia da fantasia por ser uma função do espírito e ter o poder de libertação e cura, o que a fantasia não teria por estar desligada das verdades profundas e mais voltada às ilusões. Val Helmont (citado por Raff, 2002) era discípulo de Paracelso e afirmava a existência do archeus, uma unidade individual, o centro do indivíduo no qual espírito e matéria estavam unidos e que não pertencia somente a um dos dois mundos, mas era um intermediário entre ambos. O archeus teria a sua própria imaginação e impregnaria a matéria com suas imagens. Quando essa imaginação era distorcida, explica Raff (2002), produzia como resultado a doença. A imagem da doença, por diversas razões, sobrepujaria o archeus, o que resultaria na doença física. Então, a doença seria uma entidade imaginária.
Essa é a ideia encontrada na teoria de Arnold Mindell segundo o qual a doença pode ter um núcleo imaginário, o que o levou a criar métodos que tratam sintomas físicos como imagens. A imaginação, portanto, pode ter importante influência na cura, uma vez que é desencadeadora de doenças. Personificar a doença, atribuir-lhe uma imagem e interagir com ela no processo de imaginação ativa pode levar à cura por meio da atribuição de sentido (Raff, 2002).
Os benefícios físicos, entretanto, são apenas parte dos ganhos que a imaginação ativa pode trazer ao seu praticante. O mais importante benefício advindo dela é possibilitar ao indivíduo tornar o si-mesmo centro de sua vida e, dessa forma, ser plenamente o que é em profundidade (Raff, 2002).
Embora Jung valorizasse muito os sonhos, considerava a imaginação ativa mais efetiva no que se refere ao acesso ao conteúdo do inconsciente, uma vez que nela a consciência está desperta e pode participar do processo. O encontro da consciência com o inconsciente, na imaginação ativa, ocorre em um ponto intermediário que permite a transformação da dualidade em unidade, aproxima as partes do inconsciente que se encontram em fragmentação e promove a função transcendente, tornando a consciência mais aberta ao Self por ser capaz de integrar mais os conteúdos inconscientes. Como consequência, torna os sonhos menos numerosos e repetitivos e mais concentrados (Johnson, 1986 ).
Para Jung (2013/1935, vol. 18/1, p. 184), a objetivação das imagens impessoais e esse relacionamento com elas são propiciados pela imaginação ativa cujo objetivo é:
“(...) desprender a consciência do objeto para que o indivíduo não coloque mais a garantia de sua felicidade ou mesmo de sua vida em fatores externos, quer se trate de pessoas, idéias, ou circunstâncias, mas sim que ele tome consciência de que tudo depende do fato de ele alcançar ou não o tesouro. Se a posse desse tesouro surge ao nível da consciência, então o centro de gravidade passa a estar no indivíduo, e não mais no objeto do qual era dependente.”
Quando o indivíduo passa a encontrar em si esse centro de gravidade, encontra a própria alma e passa a compreender o sentido profundo da sua vida.
Eliade (1991) considera que Jung foi capaz de evidenciar como a sucessão dos dramas humanos têm relação com a esterilização da imaginação que promove um profundo desequilíbrio psíquico. E afirma (p. 16):
“Ter imaginação é ver o mundo na sua totalidade; pois as Imagens têm o poder e a missão de mostrar tudo o que permanece refratário ao conceito. Isso explica a desgraça e a ruína do homem a quem ‘falta imaginação’: ele é cortado da realidade profunda da vida e de sua própria alma.”
Por fim, eis o sentido maior da utilização da imaginação ativa na clínica psicológica junguiana: possibilitar ao paciente tornar-se autônomo, banhar-se nas riquezas do inconsciente e trazer mais cor e sentido à vida a partir do encontro com a alma que mora nas profundezas da imaginação.
REFERÊNCIAS
Edinger, E. F. (2006). Anatomia da psique. O simbolismo alquímico na psicoterapia. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves (Trads.). São Paulo: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1990)
Eliade, M. (2002). Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Sônia Cristina Tamer (Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1991)
Epstein, G. M. D. (1990). Imagens que curam: guia completo para a terapia pela imagem. Healing visualizations. 3ª ed. Célia Szterenfeld (Trad.). Rio de Janeiro: Xenon.
Harari, N. Y. (2015). Sapiens. A brief history of humankind. New York: Harper Collins.
Hopcke, R. (2011). Guia para a obra completa de C. G. Jung. Edgar Orth e Reinaldo Orth (Trads.). Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1989).
Johnson, R. A. (1986). Inner work. Using dreams and active imagination for personal growth. San Francisco (USA): Harper & Row, Publishers.
Jung, C. G. (1980). Psicologia do inconsciente. In Obras completas de C. G. Jung (Vol.7/1). Rio de Janeiro: Vozes. (Trabalho original publicado em 1912)
Jung, C. G. (2012). Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. In Obras completas de C. G. Jung (Vol.16/2). Maria Luiza Appy (Trad.). 9ª ed. Rio de Janeiro: Vozes. (Trabalho original publicado em 1971)
Jung, C. G. (2013). A natureza da psique. In Obras completas de C. G. Jung (Vol 8/2). Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1928)
Jung, C. G. (2013). A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. In Obras completas de C. G. Jung. Maria Luiza Appy (Trad.). (Vol 16/1). 16ª ed. Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1946)
Jung, C. G. (2015). O eu e o inconsciente. In Obras completas de C. G. Jung (Vol.7/2). Rio de Janeiro: Vozes. (Trabalho original publicado em 1928)
Jung, C. G. (2012). Mysterium Coniunctionis. In Obras completas de C. G. Jung. 6ª ed. Frei Valdemar do Amaral (Trad.). (Vol.14/1). Rio de Janeiro: Vozes. (Trabalho original publicado em 1954)
Jung, C. G. (2012). Mysterium Coniunctionis. In Obras completas de C. G. Jung. 3ª ed. Frei Valdemar do Amaral (Trad.). (Vol.14/2). Rio de Janeiro: Vozes. (Trabalho original publicado em 1954)
Jung, C. G. (2013). A Vida Simbólica. In Obras Completas de C. G. Jung. 7ª ed. (Vol 18/1). Rio de Janeiro: Vozes. (Trabalho original escrito em 1935).
Jung, C. G. & R. Wilhelm. (2007). O segredo da flor de ouro. Dora Ferreira da Silva e Maria Luíza Appy (Trads.). Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1971)
Kast V. A Dinâmica dos símbolos - fundamentos da psicoterapia junguiana. São Paulo: Loyola, 1997
Penna, E. M. D. O paradigma junguiano no contexto da metodologia qualitativa de pesquisa. Psicologia USP, 2004, 16(3), 71-94. Retirado de: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v16n3/v16n3a05.pdf
Raff, J. Jung e a imaginação alquímica. Marcello Borges (Trad.) São Paulo: Mandarim, 2002.
Tonietto, L. T. e Fialho, F. A. P. Ser supervisor: percepções de supervisores em psicologia analítica. 2005. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina. Retirado de: http://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/101766