terça-feira, 4 de setembro de 2018

A Selfie e o Self.



Por:

Denise Vourakis Dias

Sinopse: a partir do advento das tecnologias digitais, as câmeras fotográficas passaram a ser utilizadas de maneira comum e popular, em telefones celulares. A internet e as redes sociais tornaram-se, do mesmo modo, o lugar de exposição para estas imagens. O artigo explora a relação entre as imagens produzidas, suas motivações e relação com a psique humana, arquétipos e complexos que comparecem tanto no ato de fotografar quanto no compartilhamento dessas imagens, particularmente a selfie ou autorretrato. 

Uma bela paisagem, um dia de sol, céu azul, mar transparente, a mata quase intocada, a pequena ilha de areias brancas. Rochas se enfileiram ao redor da praia, pequenas e grandes, visíveis e submersas, inúmeros peixes podem ser observados bem ali no raso, ao redor das pedras. Aos poucos os turistas vão chegando: são escunas, lanchas pequenas, outras maiores e iates também ancoram no local. A paisagem de antes se transforma. Muitas pessoas fotografam com as câmeras de celulares. Alguns fotografam a paisagem, outros fazem fotos submersas, alguns fazem selfies, sozinhos, em pares e em grupos.

 A fotografia tornou-se popular com a chegada das câmeras de celulares e ao mesmo tempo tornou-se um fenômeno. Existem muitos recursos e tecnologias sofisticados, que fazem inclusive fotos submersas, facilitando o usuário, geralmente de modo simplificado. Pessoas comuns tornaram-se repórteres das próprias vidas, as viagens e eventos são narrados, fotografados e postados na internet, há também aqueles que revelam intimidades. Geralmente, a maioria das pessoas têm o habito de se fotografar, de diferentes maneiras, em diversos lugares, podendo, nessa tarefa se prolongarem até por muito tempo, retratando a própria imagem, registrando aquele momento.  Às vezes deixam de viver o momento, o evento, a paisagem, o lugar e permanecem centrados nas fotografias, dando menor importância ao que acontece a sua volta. Através da postagem em redes sociais, existe a possibilidade do reconhecimento público da imagem, sendo inclusive um meio de alcançar certo prestígio ou admiração.
 
Diversos nomes da história da humanidade foram retratados e podemos saber como eram esses personagens históricos através de esculturas e pinturas encontradas em museus ou praças públicas.  Era necessário ter alguma condição material para encomendar do artista local ou para trazer um artista renomado, para executar o registro para a posteridade. Na renascença, os retratos eram executados por pintores que alcançaram, possivelmente, visibilidade em suas carreiras; eles também produziram autorretratos e seus rostos tornaram-se conhecidos. Porém era a nobreza que encomendava seus ofícios, imagens de homens e mulheres, heróis e damas, geralmente pessoas de renome. Os artistas se utilizavam de uma técnica que era quase uma imitação de realidade. De acordo com Umberto Eco, ”O uso da perspectiva na pintura implica, de fato, a coincidência, de invenção e imitação: a realidade é reproduzida com precisão, ao mesmo tempo que de um ponto de vista subjetivo, do observador, que em certo sentido adiciona a exatidão do objeto à beleza contemplada pelo sujeito” (P.194).


A ideia de atrair reconhecimento através da imagem pessoal sempre existiu, é arquetípico, tendência pré-existente, viva no espírito humano. Tornar a própria imagem mais atrativa ou propaga-las com essa intenção faz parte dessa ideia.  Retocar a própria imagem hoje é possível através da tecnologia das câmeras e dos programas de edição, da mesma maneira que se fazia na renascença, apenas se utilizam outros recursos. É possível embelezar a imagem e sair bem na foto.
Podemos afirmar que na maior parte do tempo é a persona, enquanto arquétipo, que está sendo retratada e se apresentando no espaço virtual. Tanto a persona quanto o ego encontram-se na consciência, porém os conteúdos inconscientes não estão livres de influencia-los de alguma maneira.  Para C.G. Jung a persona funciona como máscara social, ocultando de fato a verdadeira natureza do indivíduo, ela se adequa ao coletivo. Um sacrifício se dá, obrigando o eu (ou ego) a se identificar com a persona, muito embora exista um mundo particular no interior do indivíduo (Jung, 2013). A persona atua, mas o verdadeiro eu, está em outro lugar. A aparência da imagem pode ser muito diferente de seu conteúdo.

O registro pela pintura ou desenho (menos comum) cedeu lugar para a fotografia, no século 18, tornando-se domínio do homem contemporâneo. Roland Barthes, em “A Câmara Clara” realiza um estudo filosófico sobre a fotografia, desde seus primórdios e analisa diversas imagens. Menciona que a fotografia analógica, com seus laboratórios que revelavam as imagens capturadas pela câmera, tem suas bases na alquimia, (o texto é anterior ao advento da fotografia digital). Com relação ao retrato, por onde a fotografia interceptou a pintura, ele cita: “A Foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam, aí se deformam. Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que me julgo, aquele que gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte. (P.17) ”. Considerando que nas selfies, o fotógrafo e o fotografado são a mesma pessoa, o campo se torna ainda mais cerrado. Aquele que se fotografa além de criar julgamentos a respeito de sua imagem, cria fantasias sobre si.


As representações do eu que estão carregadas de tonalidade afetiva, estão relacionadas a complexos, que derivam de arquétipos, que por sua vez escapam ao controle da consciência. Verena Kast em “A Dinâmica dos Símbolos”, define o eu, citando Jung, como sendo a “expressão psicológica da união firmemente associada de todas as sensações físicas comuns” (P.24), as sensações nos chegam pelos sentidos que por sua vez percebem a realidade de maneira subjetiva e pouco racional, o complexo do eu envolve o corpo e o sentimento do corpo. Segundo a mesma autora, a vivência da identidade, seu desenvolvimento, o sentimento de vitalidade, a atividade do eu e o sentimento de estar vivo pertencem ao complexo do eu; a identidade possui fronteiras que são transitórias. A imagem que cada um tem de si pode se libertar da persona e alcançar substratos de outra natureza através do confronto com essa mesma imagem. Algo se revela e produz no outro algum efeito. 

Em ”Psique e Imagem”, Gustavo Barcelos fala acerca de emoção e imagem relacionando-as: “Vivemos emocionalmente; as emoções estão por dentro de (ou no fundo) de tudo, ainda que possam estar exiladas em alguma câmara escura da alma, inconscientes, sem contato, sem registro, banidas, não reconhecidas. ” (ebook).  No texto, a criação de imagens é descrita como trabalho da psique humana, indo sempre além de um conceito, não deve ser interpretada, existem nela muitos significados que se relacionam em sua complexidade. A psique se faz representar através das imagens, de modo indireto e alegórico. Mesmo em imagens diretas há sentidos encobertos. O autor afirma que após o advento da descoberta do inconsciente, as imagens se tornam um grande campo de pesquisa, uma vez que existe uma conexão entre ambos. As imagens estão presentes em sonhos, fantasias, na arte, nos mitos e seguindo o texto: “as imagens são o meio pelo qual toda experiência se torna possível. A imagem é o único dado ao qual há acesso direto”. Muitos significados correlacionados estão presentes nas imagens conferindo a elas grande complexidade.

 Imagem e fantasia estão interligadas, a nível inconsciente imagens são produzidas, alcançam a consciência, embora não seja possível decifra-las completamente. O emergir da imagem, seja em atividade criadora consciente, na forma de um sonho ou em devaneio, reflete o movimento da libido. A libido se expressa na forma da fantasia. O que é projetado pela imagem libera conteúdos do inconsciente para a consciência, produzindo a função compensatória. O ato de compreensão desses conteúdos simbólicos gera a função transcendente, que é transformadora. A personalidade pode se transformar através da função transcendente, compreendendo seus símbolos, atenuando o confronto entre opostos. 


Portanto, as imagens produzidas em atividades criadoras incluem imagens fotográficas, como as selfies. Uma multidão de selfies são despejadas diariamente nos espaços virtuais.   Várias experiências podem surgir do ato de se fotografar e se expor, fantasias a respeito de si podem estar presentes na produção dessas imagens. O complexo do eu, com seus conteúdos afetivos, pode estar presente assim como a persona, a máscara social; na medida que ocorre a exposição, interpretações podem surgir, tanto dos espectadores/observadores, quanto da própria pessoa, que ao se ver novamente, cria novas fantasias, experimentando outras percepções; é possível que este processo dinâmico resulte em alguma transformação. A busca de reconhecimento público pode trazer revelações para o próprio indivíduo, tanto ele pode ser aprovado, quanto desaprovado. A persona pode não ser o suficiente para encobrir outras partes inconscientes. A selfie tenta encobrir algo, porém esse algo não se esconde totalmente, revelando segredos. Também guardamos fantasias a respeito de nós mesmos, também possuímos ambivalências e aspectos reprimidos. Existe o ideal do eu que se encontra fora de alcance, mas que ao mesmo tempo serve de norte para a construção de uma identidade. Segundo Verena Kast, tanto o ideal do eu quanto o complexo do eu se transformam incessantemente na medida em que existe o confronto com a sombra (P.76). Para Jung, a sombra é individual, mas compreendida enquanto arquétipo, por ser arquetípica tem suas bases no inconsciente (Jung, 2013:19). Uma vez que ela se manifeste, conteúdos inconscientes estarão presentes. É justamente esse confronto que amplia a consciência, a função transcendente, compensatória, refaz as fronteiras entre consciente e inconsciente, alcançando a fonte de tudo, que é o si-mesmo. Verena Kast, afirma que o complexo do eu, como todo complexo se liga a um ponto que é arquetípico, no caso ao si-mesmo; “o si-mesmo é entendido como personalidade atual e futura, ele revela no decorrer da vida nosso oculto objetivo de vida por meio do desenvolvimento do complexo do eu, desenvolvimento este também intencionado pelo si-mesmo” (P.27). Durante a vida, esse ajuste se dá muitas vezes, o complexo se constela e se confronta gerando transformações na identidade.  Para Jung, “o Si-mesmo, irracional e indefinível, o eu não se opõe, nem se submete, simplesmente se liga, girando em torno, como a terra em torno do sol – meta da individuação, imagem na qual estamos incluídos apesar de não ser possível descrevê-la” (JUNG, 2013: 405).



Concluindo, embora seja um fato novo, podemos pensar na relação que um indivíduo desenvolve com a sua própria imagem, muitas vezes registrada por ele mesmo, através de meios tecnológicos e compartilhada também por ele, nas redes sociais e o efeito que as interpretações, reações do outro possam lhe causar.  Podemos considerar também as fantasias criadas a partir dessa experiência e as compensações geradas. O fato novo, produzido pelas possibilidades tecnológicas também incide a nível coletivo, ampliando o acesso às imagens que são geradas e modificando padrões de comportamento. Podemos pensar que não capturamos a imagem, mas que a imagem nos captura. Uma nova frente de estudo, de ampliação na compreensão do humano se apresenta; poderemos explora-la melhor na medida que o comportamento se expande, tornando-se cada vez mais comum e acessível entre nós. 


Referências Bibliográficas

ECO, Humberto (2010). Historia de La Belleza. Ed. Debolsillo, 2010
   JUNG, C.G. (2013). Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. OC, 9/1. Petrópolis: Vozes.
BARTHES, Roland (1980). A Câmara Clara, RJ: Nova Fronteira.
BARCELOS, Gustavo (2017). Psique e Imagem, RJ: Vozes
KAST, Verena (2013). A Dinâmica dos Símbolos, RJ: Vozes.







    
            

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A ALMA DO DESERTO

Por:
 Denise Vourakis Dias




      Sinopse: a partir das considerações de Jung sobre a presença maciça de imagens arquetípicas no inconsciente coletivo e sua relação com eventos mitologizados da natureza, o texto a seguir explora o processo simbólico existente através de uma vivência na imagem e da imagem. Através das projeções as formas arquetípicas se manifestam, assumindo alguma definição. Entre os arquétipos existentes o texto foca principalmente na anima, que humaniza a existência e cuja ausência gera perda de vitalidade e com a qual é necessário manter conexão. O texto também se utiliza da linguagem alquímica por ser essencialmente metafórica, gerando um pensamento imaginativo capaz de criar significado através de analogias.
    

Desertos são lugares impactantes e singulares. Alternam paisagens áridas, dunas de areias com oásis restauradores que acolhem aqueles que nele se aventuram numa jornada repleta de riscos. Os desertos podem se tornar verdejantes depois de um curto período de chuvas, modificando totalmente, por pouco tempo, sua fauna e flora, trocando a aridez por uma promessa de vida. Seres de toda espécie, do reino vegetal e animal se proliferam rapidamente até o último instante da estação chuvosa para se reproduzirem. Todo e qualquer deserto guarda em si essa promessa, nos animais que ali sabiamente sobrevivem fazendo uso de seus instintos, nos vegetais que sabem retirar da natureza o mínimo para a sua existência. Por serem demasiadamente inóspitos são pouco ocupados por seres humanos e dessa forma mantém intactas suas características naturais. Ali a Terra é o que é, sem interferências significativas do homem. O deserto pode, como toda expressão da natureza, ser tomado como um representante do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue apreender através da projeção, espelhada nos fenômenos da natureza (JUNG, 2013, 5).




O deserto do qual falaremos é o Atacama, localizado no Chile e próximo à fronteira com a Bolívia, como todo deserto é de difícil acesso; mas talvez seja um lugar único por suas características, alternando paisagens antagônicas: verdadeiros desertos repletos de rochas de todos os tamanhos, sem qualquer vegetação, com lagoas de águas salgadas, montanhas, vulcões, animais silvestres, muitas aves, riachos de águas frias, riachos de degelo, e também de águas quentes, gêiseres (vapores lançados por fontes termais que se encontram debaixo da terra), vegetações rasteiras, arbustos e flores (!). Uma nova paisagem se revela, mas, sobretudo uma imensa vastidão se interpõe, imensos vazios sem viva alma (?). Este deserto, guarda em si, imagens de uma natureza primitiva, pura, que se opõe formando contrastes, se o visitante for observador e se abrir para essas imagens é possível viver uma experiência única e profunda. 



Existe o vazio desértico, vazio concreto, existe também o vazio interno, vazio metafórico, destino de todo ser humano; ao adentrar o vazio é preciso coragem e destemor, porém é o vazio interno que faz caber a experiência dentro. O vazio do deserto é composto por areia, cristais e rochas onde quilômetros são percorridos e a paisagem pouco de modifica, a secura, a falta de umidade, a poeira, o sol constante, a claridade se reflete nas rochas, ofuscando o olhar, o deserto parece não ter fim. A vastidão não é acolhedora, não oferece nenhum continente, é fácil se perder ali, se perder é um grande risco, pode ser mortal perder-se nessa imensidão. Inesperadamente surgem lagoas rodeadas de muito verde, pequenos arbustos, montanhas cobertas de vegetação rasteira e aves de muitos tipos. A mudança na paisagem é impactante, parece inacreditável que exista aquele tesouro de abundância onde antes só havia pó, o vazio se alterna dando lugar a algo que preenche, nutre e acolhe com cores vivas. Os tons neutros e homogêneos das rochas e areias são substituídos por uma profusão de cores.  Se existe alguma debilidade física causada pela altitude, pelo frio ou clima seco, características do lugar, naturalmente há uma tendência a quietude, pode ocorrer uma introversão de energia, necessário economizar os passos para vencer o espaço. Um estado de semissonolência pode se instalar alterando a atenção e rebaixando o juízo, criando um vazio que torna possível ingerir a paisagem através do olhar. Esse estado da mente, do corpo, gera a adaptação necessária para absorver o que o deserto tem a dizer, absorver suas contradições e transcender a confrontação sem se abater, conceber o deserto em sua totalidade é absorver seu incrível movimento, num diálogo onde opostos se incluem, porque essa é a sua natureza. Para tomar posse da experiência intensa que o deserto provoca é necessário se apropriar de sua essência e dela retirar a energia necessária para se adaptar, encontrar o equilíbrio necessário e assumir um lugar de condução.  O deserto não possui uma única representação e investir nessa ideia é um grande risco, risco de jamais sair de seu vazio. As imagens têm o poder de ganhar vida e movimento e isso pode se dar tanto fora como dentro, desde que o convite feito, seja aceito. (JUNG, 2013: 159, 166, 181, 183, 184, 186, 187, 189).

 O deserto invade de tal forma que se torna impossível resistir a ele. É possível ouvir a alma, seu sopro mágico de vida, sua ousadia, quebrando a aparente inercia do vazio desértico nos oferecendo vida. A alma nos conduz ao sagrado e tudo que é por ela tocado torna-se numinoso. Trata-se da alma-anima, o arquétipo da vida, capaz de nos conduzir a um significado mais elevado (JUNG 2013: 58, 60). Jung define o arquétipo anima como sendo a parte feminina da alma, ela é ctônica, está relacionada a terra, ao telúrico (Jung, 2013: 119). A anima pode ser encontrada nas sizígias, conjunções de pares de opostos e a imaginação está presa a este motivo projetando-o repetidamente (JUNG 2013: 120).



“Os arquétipos são formas de apreensão, e todas as vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não seu caráter mitológico” (JUNG, 2013: 280).



A visão de uma lagoa surge na paisagem, cabe perfeitamente, suas bordas arredondadas, as águas serenas, limpas. Refúgio das aves, banquete de alimentos, refúgio para o olhar, cenário que conduz ao pleno, plenitude de vida, imagem de quase sonho. Uma solicitação para tomar consciência, nada a acrescentar, o plano que se apresenta é perfeito.
“O devaneio diante das águas dormentes dá-nos essa experiência de uma consistência psíquica permanente que é o bem da anima. Recebemos aqui o ensinamento de uma calma natural, e uma solicitação para tomar consciência da calma de nossa própria natureza, da calma substancial da nossa anima. A anima princípio do nosso repouso, é a natureza em nós que basta a si mesma, é o feminino tranquilo. A anima, princípio dos nossos devaneios profundos, é realmente, em nós, o ser de nossa água dormente” (BACHELARD, 66).  


No deserto há também o sal, ele está no ar, nas bancas dos mercados, na beira das lagoas, na água do chuveiro que impede a espuma na hora do banho, em todo lugar.  O sal seca tudo. Se faz o charque, o bacalhau, todo tipo de conserva utilizando o sal. Antes, quando não havia a luz elétrica, refrigeradores e freezers, essa era a forma de conservar alimentos. Naquela época o sal valia ouro. O sal desidrata e retira a umidade impedindo assim que bactérias se proliferem. O sal coagula, petrifica, as imagens do Atacama já se encontram conservadas na memória antes mesmo que o conheçamos pessoalmente. Não há como não ser tocado por essa alternância entre o que seca e o que encharca, o vazio e o pleno. O sal que conserva as memórias para que um dia retornem, é também o sal que resta quando a água seca. A alma não vive sem o sal, ela recorda o lugar exato onde o sal se encontra, o sal das experiências profundas, o sal que arde é o mesmo sal que cura. O sal é a própria terra (Hillman, 2011: 95, 96, 97, 98).  No deserto existem muitas minas de sal, mas o sal mais visível é aquele que surge da evaporação da água, principalmente as margens das lagoas, fica o registro da experiência, a água esteve ali, porém evaporou-se, vão-se as emoções, dessa maneira a “alma torna-se ígnea e seca” (JUNG, 2013:55), não apodrece, quando a alma quer viver é preciso salgar, assim se conserva e há de se dissolver um dia em águas restauradoras para novamente secar. Dissolve (solutio) e coagula (coagulatio), às vezes terra, às vezes água, esse é seu movimento, a partir de elementos femininos a alma se expressa, seja em uma bela lagoa ou num punhado de sal.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS 
BACHELARD, Gaston (2009). A Poética do Devaneio. SP: Martins Fontes.
HILLMAN, James (2011). Psicologia Alquímica. Petrópolis: Vozes.
JUNG, C.G. (2013). A natureza da psique. OC, 8/2. Petrópolis: Vozes.       
__________ (2013). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. OC, 9/1. Petrópolis: Vozes.
  

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Jung e a astrologia


Jung e a astrologia
Por:
Carloz Maltz
Jung comparava a psique ao “reino dos céus que está dentro de nós” sobre o qual o Cristo falara, e dizia que a psicologia devia todo o respeito á sua “irmã mais velha”, a astrologia, por ser esta, a detentora de TODO o conhecimento psicológico da antiguidade. Conhecia e utilizava a simbologia astrológica á partir do principio da sincronicidade e da coincidência significativa no trabalho com seus pacientes, especialmente em casos que ele considerava mais misteriosos e obscuros. E teve uma filha que se tornou astróloga profissional.  Atualmente em todo o mundo, há um número crescente de psicoterapeutas que seguem pela trilha inaugurada por ele, interessados e treinados em astrologia. E um número também significativo de astrólogos estudando sua obra com seriedade.

A astrologia apresenta algo como um “arquétipo individual”, constelado “assim em cima como embaixo” no momento em que uma nova individualidade surge nesse mundo. Aquilo que ela poderá ser, se se tornar o que já é em potencialidade. O mapa astrológico do momento do nascimento de uma pessoa é como uma semente de carvalho. Não existe nenhuma garantia de que a semente vai se transformar num grande e frondoso carvalho, trazendo seus frutos e sementes para o mundo.  Mas é praticamente impossível que ele se torne um abacateiro. E o processo de tentar ser aquilo que não é, seja para atender expectativas alheias, ou as suas próprias fantasias narcísicas, pode ser perigosamente frustrante e fatal para esse pequeno pedaço do cosmo que é o indivíduo. Dizia o grande sábio suíço: “um tigre é um tigre, não queira transformá-lo em um animal vegetariano”.

O momento da primeira respiração é o grande símbolo do ato de individualização. O ser recém-nascido respira, e nesse respirar, o homem é o arquétipo símbolo do seu estado de criatura individualizada.

A astrologia foi, e pode ser hoje em dia, um sistema para tirar o indivíduo de seu isolamento e incorporá-lo no processo eterno.  O mapa de nascimento, considerado como um símbolo da participação fundamental do indivíduo no processo universal pode revelar aquilo que ele é por natureza, e consequentemente, aquilo que ele pode realizar se viver em concordância com essa “lei” do seu ser individual, pois ser humano é ser conscientemente completo; é ser um microcosmo, um ponto focal de importância e força dentro do vasto organismo do macrocosmo – o Todo Universal.

O pensamento astrológico é, como todo pensamento tradicional, um pensamento decorrente de um sistema coerente de símbolos que se articulam entre si. Para Jung, os deuses e os heróis da mitologia são “realidades da alma”. E o que é a astrologia senão uma tentativa de diálogo com nossos deuses interiores? E quem são Saturno, Mercúrio, Marte, Vênus, senão lampejos da nossa própria alma refletidos no grande espelho do céu?





segunda-feira, 7 de maio de 2018

Individuação: O Indivíduo e o Mundo

Por : Roque Tadeu Gui


Individuação: O Indivíduo e o Mundo¹


Este ensaio discute o conceito de individuação, noção central da psicologia analítica. Examina suas origens filosóficas e seus desdobramentos peculiares na doutrina junguiana. Avalia a relação crítica existente entre os processos de adaptação do indivíduo ao mundo e as demandas da individuação pessoal, argumentando que embora a individuação seja uma tendência inerente à condição humana trata-se de um processo sem fim – daí exatamente o conceito de tendência – e pode ser cultivado e direcionado pelo empenho pessoal, com a adoção de estratégias de desenvolvimento, tal como a psicoterapia e análise. São discutidas as relações – estas também críticas e complexas – entre o opus transformador do indivíduo e o da sociedade, observando que embora Jung tenha valorizado sobremaneira a importância do desenvolvimento do indivíduo, preocupou-se, igualmente, com enfatizar a responsabilidade do indivíduo na criação de valores necessários para o avanço da sociedade.

    •    As Origens do Conceito
    •    Um Conceito Junguiano
    •    Individuação:  Adaptação e Singularidade
    •    Individuação para Todos ou para Poucos?
    •    Transformação do Indivíduo ou da Sociedade?


As Origens do Conceito
O conceito (principium individuationis) tem longa história na Filosofia. Pode-se encontrá-lo na filosofia de Aristóteles, Plotino, Santo Tomás de Aquino, Leibniz Schopenhauer (Clarke, 1993).
De maneira resumida, o conceito se refere à diferenciação de entidades individuais a partir de uma substância geral, universal. O termo foi utilizado para designar a constituição da individualidade a partir de uma substância comum; a individuação atribui um caráter privilegiado à substância que a antecederia e que teria existência para além dos próprios indivíduos.
Segundo Pieri (2002, p. ? verbete individuação), a filosofia apresenta três respostas para a questão de como uma substância genérica, comum, se torna esta substância específica: a) a individuação dependeria da matéria das coisas; para santo Tomás, o princípio da individuação seria representado pela matéria comum quando ela fosse marcada, isto é, considerada, como ele diz, “sob determinadas dimensões”, isto é, um homem é este homem enquanto unido a um corpo que o determina no espaço e no tempo; Schopenhauer irá considerar a vontade como substância que seria comum a todos os homens; b) a individuação dependeria da forma; São Boaventura, expoente máximo da escola filosófica franciscana, considerava a forma como "essência que restringe e define a matéria a determinado ser". O Princípio da Individuação residiria na comunicação que deve subsistir entre forma e matéria; o indivíduo seria este algo – este remete à matéria e algo à forma; c) a individuação dependeria da matéria, da forma e da sua composição. Duns Scoto, filósofo e teólogo inglês (conforme citado por Pieri, 2002, p. ?), afirmava que

Entre indivíduos da mesma espécie intercorrem ligações que se exprimem na sua natureza comum composta por matéria e forma, e justamente a partir destas é possível chegar à singularidade (e, portanto, a este algo), mas através de um incremento de tipo formal por que ele denominou "essidade" ou "estidade"  Essa realidade última é a ”entidade positiva”, determinação última e positiva tanto da matéria quanto da forma, quanto da composição de ambas. 
Para Scoto, portanto, o indivíduo se caracteriza, pela complexidade e pela riqueza das suas determinações e não pela sua simplicidade.
Em Schopenhauer, o conceito ganha ênfase: para ele o mundo é a expressão de uma força cega, que se desenvolve e se materializa por meio de elementos cada vez mais individualizados, desde a matéria e as forças da natureza, passando pelas plantas e animais e culminando na humanidade – grau máximo de manifestação individuada da vontade. No ser humano, a vontade universal se expressa com ânsia insaciável, gera o egoísmo autodestrutivo que conduz inevitavelmente ao sofrimento e à morte. Schopenhauer resume a situação trágica do mundo e dos homens: "Pois o mundo constitui o inferno, e os homens dividem-se em dois grupos: de um lado ficam os atormentados, e do outro, os demônios" (Schopenhauer, 1851/2001, p. 122).

De acordo com Clarke (1993), Nietzsche endossava em grande parte as idéias de Schopenhauer, seu  contemporâneo, no que se referia à condição humana e à inexistência de qualquer finalidade transcendental para o esforço humano. Contudo, rejeitava as conclusões pessimistas do colega filósofo. Para ele, o objetivo da vida residia na afirmação da vontade humana e no caminho da auto superação. Para Nietzsche o homem é o grande artífice do universo, criador de propósitos e de significados para o cosmo. A grande maioria dos homens dispõe-se a levar uma vida fútil, evitando a consciência de sua própria inutilidade e a da própria vida.

No entanto, alguns indivíduos realizam um destino maior, ousando desafiar os cânones coletivos, enfrentando os próprios temores e construindo novas possibilidades; eis o Super-homem, capaz de rejeitar a mediocridade, comprometendo-se visceralmente com a vida, no que ela tem de dor e de prazer, de alegria e tristeza, e dizendo sim à vida, com tudo o que ela tem de melhor e de pior.

Pode-se ouvir um eco antecipatório das idéias junguianas sobre o processo de individuação. Jung via nas idéias de Nietzsche o prenúncio do conceito de realização do Si-mesmo², quintessência do ser individual. Se para Schopenhauer, a individuação é um fardo decorrente do processo de existência, para Jung, acompanhando Nietzsche, trata-se de uma oportunidade para o ser humano descobrir (ou melhor, criar) um sentido para a vida. Não se trata, para Jung, de uma promessa de felicidade, de bem-estar contínuo, mas um caminho de cura e completude: "não sejamos perfeitos, porém o mais completos possível", dizia Jung (referência com p.).
Jung rejeitará a idéia de realização como busca da perfeição, admitindo-a como meta, jamais alcançável. Reconhecerá que

    Os grandes problemas da vida nunca são resolvidos de maneira definitiva e total. E mesmo que aparentemente o tenham sido, tal fato acarreta sempre uma perda. Parece-me que a significação e a finalidade de um problema não estão na sua solução, mas no fato de trabalharmos incessantemente sobre ele. É somente isto que nos preservará da estupidificação e da petrificação. (Jung, 1930/1991, OC-VIII, § 771)
    Já nos encontramos, agora, às portas do conceito junguiano de individuação.


Um Conceito Junguiano
A individuação (ingl. Individuation; al. Individuation; fr. Individuation; it. Individuazione) é o "conceito central da psicologia analítica com o qual se entende genericamente o devir da personalidade, e em particular o processo de transformação contínua de uma individualidade que vem psiquicamente a constituir-se em referência a uma substância comum ou coletiva" (Pieri, 2002, p. ? verbete individuação).
O conceito foi publicado pela primeira vez em 1921, no livro Tipos Psicológicos, que vinha sendo elaborado desde 1913 (Samuels, Short & Plauer, 1988). Jung o descreve em um parágrafo desse livro que, junto com A Interpretação dos Sonhos de Freud (1900), tem sido considerado uma das principais obras psicológicas do século XX:

A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É portanto um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. É uma necessidade natural; e uma coibição dela por meio de regulamentos, preponderante ou até exclusivamente de ordem coletiva, traria prejuízos para a atividade vital do indivíduo. A individualidade já é dada física e fisiologicamentge e daí decorre sua manifestação psicológica correspondente. Colocar-lhes sérios obstáculos significa uma deformação artificial. É óbvio que um grupo social constituído de indivíduos deformados não pode ser uma instituição saudável e capaz de sobreviver por muito tempo, pois só a sociedade que consegue preservar sua coesão interna e seus valores coletivos, num máximo de liberdade do indivíduo, tem direito à vitalidade duradoura. Uma vez que o indivíduo não é um ser único mas pressupõe também um relacionamento coletivo para sua existência, também o processo de individuação não leva ao isolamento, mas a um relacionamento coletivo mais intenso e mais abrangente. (Jung, 1921/1991, OC-VI, § 853)
Neste texto em que inaugura o conceito, Jung destaca alguns de seus elementos constitutivos: diferenciação do indivíduo em relação aos coletivos  social e psíquico (de um lado as normas culturais e de outro os determinantes arquetípicos da personalidade); o  caráter imperativo do processo (que se não atendido leva ao colapso vital); correlação entre saúde da sociedade e nível de desenvolvimento dos indivíduos que a constituem.

Em outra obra, alguns anos depois, Jung enfatizará o caráter de singularização do indivíduo no processo de individuação, apontando para a realização plena do  seu potencial:

Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por "individualidade" entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Podemos, pois, traduzir "individuação" como "tornar-se si-mesmo" (Verselbstung) ou "o realizar-se do si-mesmo" (Selbstverwirklichung). (Jung, 1928/1981, OC-VII, § 266)
Em outro volume de suas Obras Completas, Jung insiste na associação das idéias de individualidade e originalidade, diferenciadas do coletivo.

Entendo por individualidade a originalidade e peculiaridade do indivíduo sob todo e qualquer aspecto psicológico. Individual é tudo que não é coletivo, o que, portanto, só pertence a um e não a um grupo maior de indivíduos. Dificilmente poderíamos falar dos elementos psíquicos da individualidade, mas só de seu grupamento e combinação próprios e específicos. (Jung, 1921/1991, OC-VI, § 857)
O processo de individuação surge, então, como a dinâmica complexa de separação do indivíduo em relação aos todos indiferenciados: a família, a sociedade, o mundo, o inconsciente coletivo.

Indivíduo é um ser por si só. Caracteriza-se o indivíduo psicológico por sua psicologia peculiar e, em certo aspecto, única. A peculiaridade da psique individual aparece menos em seus elementos do que em suas formações complexas. O indivíduo (psicológico) ou a individualidade psicológica existem inconscientemente a priori, mas conscientemente só enquanto houver uma consciência de sua natureza peculiar, isto é, enquanto houver uma distinção consciente em relação a outros indivíduos. A individualidade psíquica é dada correlatamente com a individualidade física, mas, como dissemos, de forma inconsciente. Necessário se faz um processo de diferenciação, de individuação, para tornar consciente a individualidade, isto é, extraí-la da identidade com o objeto. A identidade da individualidade com o objeto é sinônimo de sua inconsciência. Sendo inconsciente a individualidade, não há indivíduo psicológico, mas apenas psicologia coletiva da consciência. Neste caso, a individualidade inconsciente se manifesta como idêntica ao objeto e projetada sobre ele. Por isso, o objeto tem valor exagerado e sua influência determinante é poderosa demais. (Jung, 1921/1991, OC-VI, § 858)

    
Segundo Nagy (2003), o conceito de individuação implica a idéia de

... uma psiquê inconsciente que, de certa forma, contém um conhecimento do futuro, assim como contém um conhecimento da personalidade como um todo. O que devemos fazer é seguir o fluxo natural da energia vital de modo a realizar os objetivos já existentes como 'potenciais prospectivos', em forma a priori, porém nascente.  (p. 227)
Daí as metáforas utilizadas para designar o processo de individuação: realização de potencial, consciência do mito pessoal, acerto de contas consigo próprio, jornada em busca de si mesmo.
O processo de individuação implica um duplo relacionamento: por um lado, um movimento introspectivo, uma conversa do ego-consciência com as figuras do inconsciente; de outro, uma conversa do ego-consciência com as imagens³ do mundo.

Não é fácil descrever a fenomenologia das transformações que ocorrem com o indivíduo no processo de individuação. Este, tal como outros conceitos relativos à Psicologia Profunda, faz parte de um conjunto de abstrações incomensuráveis. Uma das formas de descrever o processo de individuação é por meio da imagem de um eixo que une duas instâncias psíquicas. Em um pólo, o ego-consciência e no outro o Self⁴  - ou Si-mesmo, arquétipo⁵ central da psiquê (Edinger, 1989).

Jung utiliza o termo Self em duas acepções: primeira, como totalidade da psiquê que abarca o consciente e o inconsciente, uma dimensão estrutural, portanto; segunda, como fator dinâmico nuclear da personalidade total, ou seja, o fator central que organiza e estabelece o campo psíquico coletivo (Jung, 1921/1991, OC-VI, § 902).

A relação ego-Self mantém-se tensionada ao longo da vida do ser humano: o excessivo distanciamento dos interlocutores impede a recepção pelo ego das energias criativas oriundas do inconsciente;⁶ a excessiva aproximação implica na identificação do ego com o Self, sendo aquele tomado pelas imagens míticas do inconsciente, o que equivale a uma psicose.

A transformação da consciência se dá, portanto, em duas direções: primeiro, no sentido de um deslocamento do complexo do eu de sua pretensa centralidade absoluta na psiquê para o papel de um observador que, embora ativo, não reivindica o poder de impor sua vontade custe o que custar; segundo, no sentido da subordinação da vontade egóica ao eixo ego-Self, ocupando o ego posição receptiva ao sentido e significado oriundo do Self. A idéia corrente de que a psicologia junguiana tem como propósito a identificação final do ego com uma instância psíquica ou metafísica transcendente não corresponde às proposições de Jung.

A proposta junguiana, pelo contrário, enfatiza que a separação entre Self (Si-mesmo) e ego é fundamental para  a dinâmica psíquica. Manter-se em relação é o aspecto fundamental dessa dinâmica. O que constitui o campo da experiência psíquica são as reações cambiantes entre as duas grandezas. Na reflexão junguiana, não é o sábio, fora do mundo que interessa, mas o homem fincado na terra e relacionando-se com o outro por meio da palavra (Maroni, 1998, p. 54).

O conhecer-se ocorre em três níveis (Maroni, 1998). Antes de Freud, conhecer-se significava conhecer o ego e suas funções. Com Freud, ampliou-se o autoconhecimento para o conhecimento da vida pessoal passada, esquecida ou reprimida. Com Jung, conhecer-se atinge um novo nível: o do arquétipo. Este novo nível remete às representações psíquicas de culturas, histórias e contextos geográficos diversos, que extrapolam a identidade pessoal, familiar e social. O mundo arquetípico aponta para as possibilidades  múltiplas do ser e do vir-a-ser. Com seu conceito de inconsciente coletivo e suas estruturas – os arquétipos – Jung radicaliza a asserção psicanalítica da relatividade do eu.

Maroni (1998) considera que o campo do inconsciente arquetípico (coletivo, portanto) é policêntrico: núcleos de poder imaginativo que constituem uma rede energética no inconsciente. Conhecer esse mundo imaginário significa abrir-se para um diálogo com figuras inconscientes (complexos ou sub-personalidades). A expressão diálogo envolve o reconhecimento do caráter igualitário existente entre as duas instâncias da psiquê – a consciência e o inconsciente.
Aqui o inconsciente não é um subproduto da consciência, mas sua contrapartida, seu necessário complemento.

Ao propor o diálogo com as figuras da imaginação (complexos inconscientes que emergem na consciência, por meio da fantasia, do sonho, das patologias, dos impulsos criativos), como instrumento do processo de individuação, Jung trata-as como seres reais, objetivos. Ao levá-las a sério, o eu diferencia-se delas e absorve parte de sua energia, despotencializando-as e evitando a influência possessiva sobre o ego-consciência.

A relação dialógica estabelecida entre consciência e inconsciente implica responsabilidade ética e intelectual. Os conteúdos do inconsciente reclamam direito à existência na vida psíquica do indivíduo. Assim, a atitude de diálogo deve ser permanente, possibilitando a emergência e consideração das figuras imaginárias. O diálogo ocorre por meio da animação dessas imagens, dando-lhes fala, sentimento e pensamento. É necessário ouvir o que a outra metade de mim  tem a me dizer.

Contudo, dois perigos rondam o processo de individuação: o primeiro é o risco de assimilação do eu pelo Si-mesmo; isto significa a submissão do eu ao controle de qualquer fator inconsciente, o que acarretará uma falha no processo de adaptação. O risco inverso, a assimilação do Si-mesmo ao eu, decorre da ênfase atribuída ao eu consciente e ao mundo da consciência, levando à redução dos fatores inconscientes ao eu. Jung procura estabelecer o caminho do meio entre a supremacia do eu e a supremacia do inconsciente. Sua conclusão:

Na primeira hipótese [assimilação do eu ao si-mesmo], recomenda-se o emprego de todas as espécies possíveis de virtude. Na segunda eventualidade [assimilação do si-mesmo ao eu], a presunção do eu só pode ser sufocada por uma derrota moral. Isto se faz necessário, pois de outro modo nunca se alcançaria aquele grau mediano de modéstia que é preciso para manter uma situação de equilíbrio. (Jung, 1948/1988, OC- IX-2, § 47)

As conseqüências da inflação egóica, ou seja, da assimilação do si-mesmo ao eu, incidem sobre o relacionamento do indivíduo com o mundo. Paradoxalmente, ao supervalorizar a ampliação da consciência, o indivíduo torna-se inconsciente das limitações da própria consciência. Isto nos lembra o tom, um tanto arrogante, quando nos referimos às pessoas analisadas ou individuadas, como se fosse possível realizar isto de forma cabal. Jung nos lembra que para cada foco de luz projetada há sempre o surgimento de uma nova área de sombra, e arremata:  

Uma consciência inflacionada é sempre egocêntrica e só tem consciência de sua própria presença. É incapaz de aprender com o passado, de compreender o que acontece no presente e de tirar conclusões válidas para o futuro. Ela hipnotiza a si mesma e, portanto, não é aberta ao diálogo. Conseqüentemente está exposta a calamidades que até podem ser fatais. Paradoxalmente, a inflação é um tornar-se inconsciente da consciência. Isto ocorre quando a consciência se atribui conteúdos do inconsciente, perdendo o poder de discriminação, condição sine qua non de toda consciência. (Jung, 1944/1991, OC- XII, § 563)   

O caráter processual da individuação é ressaltado por Samuels (1989). Sua essência consiste na realização de "uma mescla pessoal entre o coletivo e o universal, por um lado, e, por outro, o único e individual. É um processo, não um estado; a não ser pela possibilidade de se considerar a morte como um objetivo final, a individuação jamais é completa, e permanece como um conceito ideal" (p. 127).

É importante fazer a distinção entre o processo de individuação e a construção de uma identidade de ego individual, equivalente à busca de um bom funcionamento egóico. Estes são necessários para a individuação, porém não representam sua meta.

Nos estágios iniciais da vida, ao longo da juventude e de parte da vida adulta, a tarefa do ego é libertar-se do poder psíquico do complexo parental e conquistar a independência. Alguns aspectos da personalidade certamente serão exacerbados em seu desenvolvimento, para lidar com os desafios que se impõem.

Por volta da meia-idade (algo que na Suiça de Jung ocorria aos 35-40 anos e que em nossa sociedade talvez possa ser situado, sem muita precisão, em torno dos 40-45 e os 50-55 anos), a unilateralidade do desenvolvimento psíquico induz processo compensatório que pode assumir a forma de reavaliação introspectiva da própria vida. Eventualmente, um quadro depressivo se estabelece, afastando o indivíduo dos relacionamentos sociais. Nos casos em que o processo de reavaliação evolui favoravelmente, a consciência se expande e clarifica.

Na segunda metade da vida, a tarefa é ir além da diferenciação do ego e da identidade pessoal para uma concentração sobre o sentido e sobre valores suprapessoais; a estabilidade do ego preparou o terreno para isso ocorrer. ... A individuação pode ser vista como um movimento em direção à totalidade através de uma integração de partes conscientes e inconscientes da personalidade. Isso envolve um conflito pessoal e emocional, resultando na diferenciação de atitudes conscientes gerais e do inconsciente coletivo. (Samuels, 1989, p.127)

Para Jung, o processo psicológico da individuação vincula-se à chamada função transcendente. Esta função psíquica conecta os opostos, consciente e inconsciente, gerando o símbolo, facilitando a transição de uma atitude ou condição psicológica para outra (Samuels, Shorter & Plaut, 1988). Nas palavras de Jung: "O processo psicológico da individuação está intimamente vinculado à assim chamada função transcendente, porque ela traça as linhas de desenvolvimento individual que não poderiam ser adquiridas pelos caminhos prescritos pelas normas coletivas" (Jung, 1921/1991, OC-VI, § 854).

A função transcendente atua, segundo Jung, com objetivo e propósito, estimulando a ampliação da consciência. Fornece uma perspectiva diferente daquela assumida pela consciência pessoal (Samuels, Shorter & Plaut, 1988).

Jung situa o processo de individuação para além do processo educacional, adaptativo à vida cultural e em sociedade. A inserção do indivíduo no corpus social é vista como um requisito para o processo.

Em hipótese alguma, pode a individuação ser o único objetivo da educação psicológica. Antes de tomá-la como objetivo, é preciso que tenha sido alcançada a finalidade educativa de adaptação ao mínimo necessário às normas coletivas: a planta que deve atingir o máximo desenvolvimento de sua natureza específica deve, em primeiro lugar, poder crescer no chão em que foi plantada. (Jung, 1921/1991, OC-VI, § 855)
Jung observa que é necessário distinguir o tornar-se consciente e o realizar-se a si mesmo e que a individuação não representa um processo de isolamento e autocentração, mas que pressupõe e inclui a participação no mundo.

Cada vez mais se confunde o processo de individuação com o processo de tornar-se consciente em que o eu é, conseqüentemente, identificado com o Si-mesmo, o que naturalmente acarreta uma irremediável confusão entre os conceitos, pois com isto a individuação se transforma em mero egocentrismo e auto-erotismo. Ora, o si-mesmo compreende infinitamente muito mais do que apenas o eu, como no-lo mostra o simbolismo desde épocas imemoriais: significa tanto o si-mesmo dos outros, ou os próprios outros, quanto o eu. A individuação não exclui o mundo; pelo contrário, o engloba. (Jung, 1946/1991, OC-VIII, § 432; os destaques são meus).

    Nesta passagem, Jung enfatiza que o processo de tornar-se consciente é sempre limitado, permanecendo o si-mesmo sempre transcendente, como possibilidade de algo mais inclusivo do que o eu pessoal. O si-mesmo supra pessoal abarca então os outros e o próprio mundo. Jung procura precaver-se de possíveis interpretações que atribuam ao processo de individuação um caráter de afastamento, escapismo e não-comprometimento com o mundo.
  
Neste sentido, e com a mesma preocupação de Jung, Maroni (2001) contextualiza o papel da introversão no processo de individuação. A vivência do processo é que assim o exige. A energia psíquica busca reorganizar-se para que ocorra uma nova adaptação interna. A partir daí, o indivíduo poderá retornar ao social, renovado psiquicamente, portando novos valores para oferecer ao coletivo, compensando a ausência forçada pelo processo de individuação. O retorno ocorrerá, desta feita, sem culpa, reinserindo-se o indivíduo na corrente libidinal da cultura (Maroni, 2001, p. 171). O objetivo da individuação, portanto, não é o isolamento, mas uma reinserção na cultura trazendo um novo valor que só o indivíduo pode produzir.          



Individuação:  Adaptação e Singularidade
Jung problematiza o pressuposto de que a individualidade é dada a partir dos elementos comuns. Ele considera "a natureza psíquica individual e a comum  ou coletiva em uma relação de mútua inclusão e de recíproca remitência, e para designar tudo isso utiliza a expressão "processo de individuação" entendido como a articulação de dois subprodutos complementares que são chamados diferenciação e integração (Pieri, 2002).

A diferenciação indica a distinção de uma parte psíquica em relação às demais e a um todo com o qual estava inconscientemente identificada. Mas indica, também, o desenvolvimento da parte, ou melhor, "a ulterior diferenciação das diferenças que tinham sido obtidas no próprio ato distintivo" (Pieri, 2002, p. ?). A integração indica a conexão das partes psíquicas entre si e com o todo, porém um todo não-sintético, ou seja, um todo que esteja consciente de ser constituído de partes diferentes e que permitiram a sua composição.

A diferenciação remete à integração e vice-versa. E isto ocorre porque duas coisas podem diferir entre si  e ao mesmo tempo se referirem  a uma terceira que as transcende, as associa e as integra.
No que se refere à adaptação psicológica, Jung distingue dois processos: adaptação às condições externas (ao mundo, portanto) e adaptação às condições internas (à psiquê, ou seja, à totalidade dos processos psíquicos, conscientes e inconscientes). Por condições externas, convém lembrar, Jung designa não apenas as condições do meio ambiente, mas também os juízos conscientes, representações do indivíduo sobre o mundo objetivo.

    Na neurose, temos sempre um transtorno no processo de adaptação, quer seja interno, quer seja externo. A adaptação ao mundo exterior pode ser prejudicada pela busca excessiva de adaptação apenas ao exterior; o indivíduo se esquece de suas necessidades internas, decorrendo daí um desequilíbrio do ato adaptativo. De maneira inversa, o distúrbio pode se originar de uma excessiva ênfase no mundo interior, desconectando-se o indivíduo das demandas exteriores. O mesmo mecanismo ocorre nas dificuldades relativas à adaptação ao mundo interior: por adaptação exclusiva ao exterior ou por negligência do exterior em prol da adaptação interior (Jung, 1916/2000, OC-XVIII-2, §§ 1087-1089). 
Jung desenha, portanto, o processo de adaptação numa área intermediária entre mundo interno e mundo externo, zona na qual se conjugam dinamicamente as exigências dos dois mundos, gerando a tensão necessária ao processo vital.

Se o processo de individuação, como já vimos, implica a recusa à conformidade coletiva, um preço, contudo, deverá ser pago: a obrigatoriedade de gerar novos valores, motor das transformações culturais.

A individuação retira a pessoa da conformidade pessoal e, com isso, da coletividade. Esta é a culpa que o individualizado deixa para o mundo e que precisa tentar resgatar. Em lugar de si mesmo precisa pagar um resgate, isto é, precisa apresentar valores que sejam um equivalente de sua ausência na esfera coletiva e pessoal. Sem esta produção de valores a individuação definitiva é imoral e, mais do que isso, é suicida. Quem não souber produzir valores deveria sacrificar-se conscientemente ao espírito da conformidade coletiva. Para isso, faculta-se-lhe a possibilidade de escolher a coletividade à qual se quer sacrificar. Só na medida em que alguém produz valores objetivos pode ele individualizar-se. Todo passo para a individuação gera nova culpa que precisa de nova expiação. Por isso a individuação só é possível enquanto são produzidos valores substitutos. A individuação é exclusivamente adaptação à realidade interna e, por isso, um processo "místico". A expiação é adaptação ao mundo externo. Ela deve ser oferecida ao meio ambiente, com o pedido de que a aceite. (Jung, 1916/2000, OC-XVIII-2, § 1095).
Assim, Jung ressalta a dinâmica do processo diferenciação-integração, inerente ao princípio da individuação. O ser humano pode perfeitamente viver segundo os padrões da sua coletividade, sacrificando, contudo, possibilidades de autodesenvolvimento psíquico. Paga um preço por isso: provavelmente o de tornar-se uma subjetividade serializada, para usar um termo de Guattari (2000), subjetividade que abdica de sua contínua singularização e se conforma aos padrões sociopolíticos estabelecidos. Porém, o distanciamento do indivíduo das normas sociais de sua coletividade, sem o necessário retorno para o solo psíquico comum, resultará em autoalienação – é  imoral e suicida, nas palavras de Jung. Imoral porque trai os fundamentos da humanidade comum e suicida porque já não se reconhece como humano. Jung insiste: 

A individuação continua sendo uma pose enquanto não forem criados valores positivos. Quem não for criativo o suficiente precisa estabelecer a conformidade coletiva com um grupo de sua livre escolha, caso contrário fica sendo uma pessoa perniciosa e vazia e um pedante. Quem produz valores não reconhecidos pertence aos desprezados; e a culpa é exclusivamente sua, pois a sociedade tem direito a valores utilizáveis. A sociedade atual é sempre o ponto de transição absolutamente importante do desenvolvimento do mundo e que exige a maior colaboração do indivíduo. (Jung, 1916/2000, OC-XVIII-2, § 1098)
    "A sociedade tem direito a valores utilizáveis" (op. cit.) é a forma que Jung utiliza para dizer que homens e mulheres têm um compromisso com o mundo neste exato momento e lugar. Não possuem a prerrogativa de se omitir, o mundo necessita de sua colaboração. Como já vimos, Jung distancia seu conceito de individuação das interpretações que o associam à busca de uma suposta  iluminação interior, alheia ao mundo e mais real do que este mundo.

    Conhecemos, na experiência clínica, os conflitos vividos por aqueles pacientes que buscam um caminho próprio, que em momentos verdadeiramente críticos precisam fazer uma escolha, tomar uma decisão que contradiz princípios e valores de família, de comunidade, de organização de trabalho, de grupo profissional ou religioso. A ansiedade é inevitável e, às vezes, insuperável: 

A exigência da sociedade é a imitação ou a identificação consciente, isto é, um trilhar de caminhos aceitos e autorizados. Só está livre disso quem produz um equivalente. Há muitas pessoas incapazes de produzir esse equivalente. Por isso estão presas ao caminho traçado. Se dele forem expulsas, são tomadas de ansiedade incurável e só um outro caminho prescrito pode livrá-las. Tais pessoas só podem chegar à autonomia após longa imitação de um modelo por elas escolhido. (Jung, 1916/2000, OC-XVIII-2, § 1099)

A adaptação externa do indivíduo exige que os objetos do mundo sejam energizados psiquicamente de modo contínuo. A regressão e a introversão da energia psíquica somente se dá à revelia da vontade egóica que se vê obrigada a abandonar seus investimentos libidinais. A ameaça da perda da adaptação externa e interna faz com que o eu rejeite a introversão do fluxo libidinal. As vivências correspondentes a esse recuo da energia psíquica em relação ao mundo externo são angustiantes: "De repente, deixamos de ser, já não somos, e não sabemos se voltaremos a ser” (Maroni, 2001, p. 171).

O resultado é um forte sentimento de culpa por sentir-se socialmente disfuncional, pela ausência de vitalidade nos papéis sociais até então desempenhados, pela constatação de que o que sobra é apenas uma máscara social – a persona.

Convém lembrar que a sociedade para Jung, seguindo a inspiração nitzscheniana, é uma fina camada sobreposta aos instintos inconscientes. A persona, simulacro de um Self autêntico, e necessária enquanto função adaptativa do indivíduo, pode nos fixar num papel social, se nos identificarmos excessivamente com ela:

Como seu nome revela, ela [a persona] é uma simples máscara da psiquê coletiva, máscara que "aparenta uma individualidade", procurando convencer aos outros e a si mesma que é uma individualidade, quando, na realidade, não passa de um papel, no qual fala a psiquê coletiva. (Jung, 1928/1981, OC-VII, § 245)

A constituição da persona representa um desenvolvimento necessário e  não-patológico do indivíduo, possibilitando ao indivíduo assumir papéis na vida social. Contudo, pode tornar-se patológica se, na idade adulta, nos identificarmos rigidamente com ela.



Individuação para Todos ou para Poucos?  
Alguns autores por exemplo, Samuels (1989) e Clarke, (1993) apontam a existência de controvérsia sobre a questão de ser a individuação um processo natural, pelo qual passam todas as pessoas, ou um processo especial passível de ser vivido por algumas poucas pessoas. Jung enfatizou o processo de individuação ocorrendo na segunda metade da vida, de maneira deliberada, com a utilização da análise dos sonhos e a prática da imaginação ativa⁷. Poder-se-ia entender, então, que se trata de um processo artificialmente induzido pela análise.

Por um lado, Jung dá a entender que o processo de individuação é uma tendência natural, que pode ser simples ou complicada, mas inevitável, dado o impulso a ser o que se é desde o início: "O processo de individuação é um fato biológico – simples ou complicado, dependendo das circunstâncias – mediante o qual todo ser vivo torna-se aquilo que está destinado a ser desde o começo" (Jung, 1952/1988, OC-XI, § 460).

Nagy (2003) reforça esta idéia:

Se o conceito de Jung sobre o arquétipo forma a base estrutural de sua psicologia, todo o sistema foi, mesmo assim, construído para justificar o conceito de individuação. A individuação, para Jung, significa um processo de toda a vida para alcançar uma união com o próprio ser - um esforço consciente (e muitas vezes também inconsciente) de levar à realização uma característica, desde o início, misteriosamente incorporada no si-mesmo, como um potencial. (p. 223, os destaques são meus)

Segundo Samuels (1989), podemos conceber o processo de individuação de três maneiras: primeira, a individuação seria um processo natural que ocorre ao longo da vida; segunda, a individuação é um processo natural que ocorre na segunda metade da vida; terceira, a individuação é um processo trabalhado e conscientizado por meio da análise. Não há necessariamente contradição entre estas maneiras de se conceber a dinâmica da individuação: tendência inerente à constituição humana, que pode ser apoiada por um esforço intencional, não necessariamente restrito a um contexto analítico/psicoterápico, mas suscetível de emergir como demanda existencial em certos momentos críticos da vida, como é o caso da fenomenologia que caracteriza a segunda metade da vida (meia idade e etapas posteriores de envelhecimento). 

Samuels (1989) lamenta que a idéia de individuação, muitas vezes, seja associada, na imaginação das pessoas, com "o simbolismo alquímico, religioso, místico e outros esoterismos" (p. 138). Além disso, embora os pós-junguianos falem em processo de individuação, aqui e acolá é usada a expressão individuado, o que remete a um estado, ao modo como falamos de um indivíduo analisado. Segundo Jung: "A meta só importa enquanto idéia; o essencial, porém, é o opus (a obra) que conduz à meta: ele dá sentido à vida enquanto esta dura" (Jung, 1946/1988, OC-XVI, § 400).



Individuação: Transformação do Indivíduo ou da Sociedade?

Jacob Burckhardt (1818-1897), historiador suíço, exerceu grande influência sobre Jung. Para aquele pensador, o indivíduo moderno emerge da Idade Média, agindo e reagindo a partir de suas próprias reflexões, isolado, egoísta, individualista. Destaca-se da tribo, do clã, da família, iluminando o mundo com sua consciência. Esta conquista, contudo, se vê ameaçada pela emergência da sociedade de massas que sufoca e serializa o indivíduo. Jung verá no conceito de individuação a possibilidade de um "projeto radical de resgatar e aprofundar a noção de indivíduo" (Maroni, 1998, p. 50). Contudo, não se trata de resgatar o indivíduo proposto pelo liberalismo econômico, mas de enaltecer a diferenciação do indivíduo em relação à sociedade, projeto que inaugura a modernidade, mas que é imediatamente sufocado, em face da subordinação crescente do indivíduo às organizações impessoais e ao estado.

O conceito de individuação, segundo a perspectiva de Jung, representa uma maneira original de enfrentar  essa crise. Não se trata apenas de uma estratégia psicoterapêutica, isolada do contexto social, mas de um projeto cultural e, poderíamos acrescentar, político, voltado para o grande problema da modernidade que segundo Jung era a anulação do indivíduo em face do coletivo. Segundo Clarke (1993), a preocupação de Jung com a situação do homem chamado moderno, principalmente no período de maturidade do seu pensamento, corrige a percepção daqueles que vêem Jung exclusivamente preocupado com questões espirituais, alquímicas e esotéricas. 

Contudo, a ênfase de Jung no indivíduo choca-se com uma visão sociopolítica que defende o tratamento dos problemas coletivos no nível estrutural da sociedade. Segundo ele, a sociedade ou o Estado é resultado da qualidade mental dos indivíduos que a compõem. Jung expõe claramente seu ponto de vista:

Os grandes acontecimentos da história mundial são, no fundo, os de menor importância. Essencial mesmo é apenas a vida subjetiva do indivíduo. Só ela faz história, somente nela acontecem em primeiro lugar as grandes transformações; todo o futuro e toda a história mundial brotam qual gigantesca soma dessas fontes ocultas do indivíduo. Em nossa vida mais privada e mais subjetiva somos não apenas os objetos passivos, mas os fautores de uma época. Nossa época somos nós! (Jung, 1939/1993, OC-X, § 315, os destaques são meus)
Jung explica sua tese, enfatizando que a individuação opõe-se, em maior ou menor grau, às normas coletivas. A separação e a diferenciação do geral para constituir o particular se fundamentam na disposição a priori do sujeito. Contudo, a oposição é aparente, pois, o individual não se orienta necessariamente contra  o coletivo. Para se opor ao coletivo seria necessário que o individual fosse também uma norma e Jung insiste que o "caminho individual jamais é uma norma" (Jung, 1921/1991, OC-VI, § 856). Argumenta Jung que a norma é resultado da totalidade dos caminhos individuais e só tem validade se houver pessoas que desejem se orientar por ela. Assim, a norma torna-se inútil se for revestida de valor absoluto. O conflito entre o indivíduo e a norma coletiva somente ocorre quando o caminho individual eleva-se à condição de norma, tornando-se, então, um individualismo extremo, patológico e contrário à vida. Arremata o autor:

Conseqüentemente, nada tem a ver com individuação que, sem dúvida, toma seu próprio caminho lateral, mas que, por isso mesmo, precisa da norma para sua orientação perante a sociedade e para estabelecer o necessário relacionamento dos indivíduos na sociedade. A individuação leva, pois, a uma valorização natural das normas coletivas; mas se a orientação vital for exclusivamente coletiva, a norma é supérflua, acabando-se a própria moralidade. Quanto maior a regulamentação coletiva do homem, maior sua imoralidade individual. A individuação coincide com o desenvolvimento da consciência que sai de um  estado primitivo de identidade. Significa um alargamento da esfera da consciência e da vida psicológica consciente. (Jung, 1921/1991, OC-VI, § 856, destaques do próprio Jung)
Assim, Jung aponta os seguintes atributos da individuação: a) o objetivo do processo é o desenvolvimento da personalidade; b) pressupõe e inclui relacionamentos coletivos, ou seja, não ocorre em estado de isolamento; c) a individuação implica um grau de oposição a normas sociais que não têm validade absoluta. Esforça-se para definir uma relação dialética entre normas coletivas e expressão da individualidade singular. A diferenciação é uma tendência da psiquê humana, necessária à saúde psicológica, porém que se dá vis-à-vis às necessidades culturais e sociais. O indivíduo terá que se haver com os conflitos decorrentes dessa diferenciação psicológica em face dos determinantes coletivos.

    A conclusão assumida por Clarke (1993), e controvertida do ponto de vista dos anseios de transformação social e política – devemos admitir⁸ – é a de que:

O remédio para os problemas da sociedade de massa, por conseguinte, não reside principalmente em ação política ou social, mas sim em uma volta às necessidades espirituais do indivíduo, a uma redescoberta do si-mesmo. A individuação é, portanto, o único remédio fundamental, a longo prazo, para as tribulações do homem moderno. (p. 200)

    Esta tarefa interior não é menos difícil de ser realizada do que a mudança das condições concretas e objetivas pretendidas pelos revolucionários sociotransformadores: "Trata-se de dizer sim a si mesmo, de se tomar como a mais séria das tarefas, tornando-se consciente daquilo que se faz e especialmente não fechando os olhos à própria dubiedade, tarefa que de fato faz tremer" (Jung, 1929/2003, OC-XIII, § 24).

Individuar-se, então, significa tornar-se uma individualidade separada, um indivíduo, em relação a dois conjuntos coletivos: a sociedade e o inconsciente coletivo. Tornar-se independente significa aqui não se identificar com os elementos oriundos do inconsciente nem com os padrões oriundos do mundo social. Advoga-se, portanto, uma posição intermediária, privilegiada, da consciência entre esses dois mundos. 

    Quanto mais a pessoa se individua, mais distinta e criticamente se posiciona em relação a normas, padrões, preceitos, costumes e valores coletivos. Embora o indivíduo compartilhe do coletivo como um membro da sociedade e de uma cultura em particular, ele representa uma combinação única dos potenciais existentes na totalidade do coletivo. Por conter as inúmeras possibilidades psíquicas, o coletivo é uma "força gigantesca capaz de fomentar delírios grandiosos e psicoses de massa" (Samuels et al., 1988, p. 47).

Jung confere um caráter heróico à luta do indivíduo em busca da sua diferenciação em relação ao coletivo social (determinantes culturais e políticos) e arquetípico (tendências estruturantes inatas do psiquismo). Preocupa-se, mais uma vez, em distinguir individuação de individualismo:   

A renúncia do si-mesmo em favor do coletivo corresponde a um ideal social; passa até mesmo por dever social e virtude, embora possa significar às vezes um abuso egoísta. O egoísta ("selbstisch") nada tem a ver com o conceito de si-mesmo, tal como aqui o usamos. Por outro lado, a realização do si-mesmo parece ser o contrário do despojamento do si-mesmo. Este mal-entendido é geral, uma vez que não se distingue corretamente individualismo de individuação. Individualismo significa acentuar e dar ênfase deliberada a supostas peculiaridades, em oposição a considerações e obrigações coletivas. A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades  individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social. A singularidade de um indivíduo não deve ser compreendida como uma estranheza de sua substância ou de seus componentes, mas sim como uma combinação única, ou como uma diferenciação gradual de funções que em si mesmas são universais. Cada rosto humano tem um nariz, dois olhos, etc., mas tais fatores universais são variáveis e é esta variabilidade que possibilita as peculiaridades individuais. A individuação, portanto, só pode significar um processo de desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades individuais dadas; em outras palavras, é um processo mediante o qual um homem se torna o ser único que de fato é. Com isto, não se torna "egoísta", no sentido usual da palavra, mas procura realizar a peculiaridade do seu ser e isto, como dissemos, é totalmente diferente do egoísmo ou do individualismo. (Jung, 1928/1981, OC-VII, § 267; os destaques são meus)

A atitude individualista é, portanto, considerada por Jung como um desvio do funcionamento sintônico do ser humano, uma verdadeira contradição. O oposto da individualidade é a identificação com o ideal coletivo, que leva à inflação egóica. A ameaça da absorção do ego pelo coletivo é sempre fortemente denunciada:

Acho importante que... os indivíduos comecem a perceber a existência de conteúdos que não pertencem à personalidade do eu, devendo ser atribuídos a um não-ego psíquico. ... É bem mais fácil anunciar a panacéia universal às multidões, porque assim não somos obrigados a aplicá-la a nós mesmos. É sabido que todo sofrimento desaparece quando muitos se encontram na mesma situação. O rebanho não conhece a dúvida; quanto maior a massa, melhor sua verdade – mas também são maiores as suas catástrofes. (Jung, 1944/1991, OC-XII, § 563)

Apesar destas conclusões, Jung faz um contraponto, ressaltando a importância do enraizamento do eu no mundo e o fortalecimento da consciência por meio de uma adaptação adequada. O processo de individuação necessita da ampla cooperação do ego consciente, que deverá assumir, inclusive, certas atitudes de caráter moral: "Neste sentido, determinadas virtudes como a atenção, a conscienciosidade, a paciência, sob o ponto de vista moral, e a exata consideração dos sintomas do inconsciente e a autocrítica objetiva, do ponto de vista intelectual, são também sumamente importantes" (Jung, 1948/1988, OC-IX-2, § 46).


Referências
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JUNG, C. G. (1993). A importância da psicologia para a época atual. (L. M. E. Orth, trad.). Vol. X das Obras Completas. Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1939) REPETIDO ABAIXO
Jung, C. G. (1993). A importância da psicologia para a época atual. (L. M. E. Orth, trad.). Vol. X das Obras Completas. Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1939)
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SCHOPENHAUER, A. (2001). Da morte – Metafísica do amor – Do sofrimento do mundo. (P. Nassetti, trad.). São Paulo: Martin Claret. (Trabalho original publicado em 1851)

¹Este ensaio faz parte de um estudo mais amplo, “Psique na Pólis: Individuação e Desenvolvimento Psicológico da Personalidade”, apresentado como dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica, na Universidade de Brasília (UnB), no ano de 2005. Surge agora a oportunidade de apresentá-lo como artigo semestral (2017/2) no Curso de Formação de Analistas do Instituto Junguiano de Brasília. O texto procura ampliar a compreensão do tema “individuação e desenvolvimento da personalidade” abordados nos seminários de formação realizados em novembro e dezembro de 2017 (“Estrutura da psique, natureza do inconsciente e o desenvolvimento da personalidade”), conduzidos pelo Prof. Dr. José Jorge de Morais Zacharias, do Instituto Junguiano de São Paulo.

²“O si-mesmo, como conceito empírico, designa o âmbito de todos os fenômenos psíquicos no homem. Expressa a unidade e totalidade da personalidade global. ... o conceito de si-mesmo é, na verdade, potencialmente empírico em parte e, por isso, um postulado, na mesma proporção.  [...] Uma vez que, na prática, existem fenômenos da consciência e do inconsciente, o si-mesmo, como totalidade psíquica tem aspecto consciente e inconsciente. ... Empiricamente, pois, o si-mesmo aparece como um jogo de luz e sombra, ainda que seja entendido como totalidade e, por isso, como unidade em que se unem os opostos". (Jung, 1921/1991, OC-VI, § 902)


³Por “imagens do mundo” refiro-me às representações pessoais e particulares que cada um de nós constrói sobre o mundo

    

⁴Self ou si-mesmo, expressões intercambiáveis na teoria junguiana. Ver nota 2.


⁵Os arquétipos são sistemas de prontidão que são ao mesmo tempo imagens e emoções. São hereditários como a estrutura do cérebro. Na verdade são o aspecto psíquico do cérebro. Constituem, por um lado, um preconceito instintivo muito forte e, por outro lado, são os mais eficientes auxiliares das adaptações instintivas. Propriamente falando, são a parte ctônica da psique - se assim podemos falar - aquela parte através da qual a psique está vinculada à natureza, ou pelo menos em que seus vínculos com a terra e o mundo aparecem claramente. É nestes arquétipos ou imagens primordiais que a influência da terra e de suas leis sobre a psique se manifesta com maior nitidez. (Jung, 1927/1993, OC-X, § 53).
 



⁶Não é demasiado lembrar que o conceito de inconsciente para Jung não se relaciona apenas ao material psíquico reprimido ou recalcado, mas comporta uma dimensão criativa, decorrente da dinâmica combinatória energética dos elementos psíquicos individuais e coletivos inconscientes. Ver, por exemplo, o conceito de inconsciente dinâmico em Jung (1912/1981, OC-VII, §§ 196-197).


⁷Método de assimilação dos conteúdos inconscientes por meio de alguma forma de autoexpressão (Sharp, 1993, p. 83).



⁸Em outro estudo, “Individuação: O Devir e a Deriva do Sujeito” (Gui, 2010), procurei estabelecer a relação do conceito de  individuação, enquanto processo de desenvolvimento individual, com o  conceito de deriva do sujeito, ou seja, o caráter circunstancial da existência humana. Para isto, lancei mão das idéias de dois outros pensadores da situação humana: José Ortega y Gasset e Paulo Freire, “ambos convencidos de que o mundo só se faz mundo por meio da práxis humana, mas também de que não se pode falar de vida humana sem que se fale deste mesmo mundo”.