sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Análise da música 93 Million Miles - A construção amorosa de ser.


Por:
Márcia David Ribeiro Fregapani


Resumo


    A letra da música 93 Million Miles, de Jason Mraz, carrega em si um caminho interessante de autoconhecimento e busca da alteridade por meio de vivências no campo materno e paterno. Este conteúdo muito se assemelha com o entendimento de Carlos Byington, em sua obra, Pedagogia Simbólica, a construção amorosa do conhecimento de ser, em que o autor diferencia o dinamismo do matriarcado, patriarcado, alteridade e totalidade com o intuito de desenvolver um conhecimento envolvente, real e sólido.
    Este presente artigo tem como objetivo exemplificar a teoria de Byington através letra da música 93 Million Miles.
   

    A pedagogia simbólica descrita por Buyington (1996) tem como objetivo construir uma relação de ensino-aprendizagem que perpasse diferentes dinamismos, criando assim uma ampla gama de possibilidades, experiências e construção sólida de conhecimento. Para o autor, é uma pedagogia com o intuito de proporcionar a formação e o desenvolvimento da personalidade, incluindo vários aspectos da vida, como o corpo, a natureza, a sociedade, emoções e as ideias. (BUYINGTON, 1996).
    Jason Mraz não é um psicólogo junguiano, é um cantor, porém conseguiu atingir as notas mais profundas do texto da pedagogia simbólica, trazendo uma vivência sincera de busca pela alteridade, consturando experiências no campo do materno, paterno e alteridade.
    É importante ressaltar que quando se fala de dinamismos matriarcais e patriarcais não se estabelece uma relação de gênero com mulheres e homens, pois estes podem ser vividos por ambos os sexos.

Há homens que expressam o dinamismo matriarcal consigo mesmos, na família e na sociedade de forma muito mais diferenciada que muitas mulheres. Nesta perspectiva, identificar o pai e o homem com o patriarcal e mãe e a mulher com a matriarcal um é erro primário. (BUYNGTON, 1996, pag. 167.

    Feita essa distinção, é importante que seja preparado o terreno para que se possa soltar o som. Eis aqui uma grande obra musicalmente junguiana de Jason Mraz:




93 Million Miles
93 Million miles from the sun
People get ready, get ready
‘Cause here it comes, it's a light
A beautiful light, over the horizon
Into our eyes
Oh, my, my how beautiful
Oh, my beautiful mother
She told me: Son, in life you're gonna go far
If you do it right, you'll love where you are
Just know, wherever you go
You can always come home
240 Thousand miles from the moon
We've come a long way to belong here
To share this view of the night
A glorious night
Over the horizon is another bright sky
Oh, my, my how beautiful
Oh, my irrefutable father
He told me, son, sometimes it may seem dark
But the absence of the light is a necessary part
Just know, you're never alone
You can always come back home
You can always come back
Every road is a slippery slope
There is always a hand that you can hold on to
Looking deeper through the telescope
You can see that your home's inside of you
Just know, that wherever you go
No, you're never alone
You will always get back home
93 Million miles from the sun
People get ready, get ready
‘Cause here it comes, it's a light
A beautiful light, over the horizon
Into our eyes

Tradução

93 Milhões de Milhas
93 milhões de milhas do sol
As pessoas preparam-se, preparam-se
Porque lá vem, é uma luz
Uma linda luz, além do horizonte
Dentro dos nossos olhos
Caramba, como é linda
Oh, minha bela mãe
Ela me disse: Filho, você irá longe na vida
Se fizer isso certo, amarás o lugar onde está
Apenas saiba, onde quer que vá
Você pode sempre voltar para casa
240 mil milhas da lua
Percorremos um longo caminho para pertencer a esse lugar
Para partilhar essa vista da noite
Uma noite gloriosa
Além do horizonte há outro céu brilhante
Caramba, como é lindo
Ó, meu pai irrefutável
Ele me disse, filho, às vezes, pode parecer escuro
Mas a ausência da luz é uma parte necessária
Apenas saiba, que você nunca está sozinho
Você sempre pode voltar para casa
Você pode sempre voltar
Toda a estrada é uma ladeira escorregadia
Há sempre uma mão que você pode segurar
Olhando bem fundo pelo telescópio
Você pode ver que o seu lar está dentro de você
Apenas saiba, onde quer que vá
Não, você nunca está sozinho
Você sempre voltará pra casa
93 milhões de milhas do sol
As pessoas preparam-se, preparam-se
Porque lá vem, é uma luz
Uma linda luz, além do horizonte
Dentro dos nossos olhos

    A letra da música pode ser dividida em três partes principais. A primeira com a descrição da vivência do matriarcado, a segunda do patriarcado e a terceira e última, a experimentação do dinamismo da alteridade, todos eles descritos cuidadosamente por Buyington.
    Na tradução da estrófe “ oh! Minha bela mãe, ela me disse: filho, você irá longe na vida, se você fizer isso certo, amarás o lugar onde está, apenas saiba, onde quer que vá, você sempre poderá voltar pra casa”. O aspecto bondoso e estruturante da personalidade característico do arquétipo materno está presente, pois sua fala de confiança constrói em seu filho um senso de capacidade transmitido pelo olhar e narrativa materna. Além de predizer seus passos futuros com bons agouros, reafirma sua eterna possibilidade de retorno ao lar.
    De acordo com Jung (ano), os atributos do arquétipo materno são:

“a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento, o instinto e impulso favoráveis; (JUNG, 1976, pag.88).

    Esta fala traduz em si todo potencial das condições de crescimento, estruturando a autoimagem e autoestima, com carga afetiva de quem reconhece no filho a bondade e a particularidade para que este saia da segurança do seio materno e possa conquistar um mundo de possibilidades, mesmo este sabendo que pode retornar sempre que precisar. Para Buyington (1996), o dinamismo da matriarcado pode ser vivenciado seguindo a lógica do “faça o que eu digo, vivenciando o que faço”, ou seja, a fala materna educa por meio do jogo da imitação. Primeiramente, o impulso maternal abre alas à autoestima com falas positivas e embaladas pela imitação, desta forma o ser aprendiz verá com seus próprios olhos.
    Ainda para o autor, os filhos se identificam com os pais amplamente, tanto em estruturas criativas quanto em estruturas defensivas, ou seja, os filhos aprendem imitativamente do de ser de seus pais, copiando as formas de que estes elaboram seus simbólos, de forma saudável ou patológica. (BUYNGTON,1996). Esta colocação demonstra a grandiosidade da influência dos pais na vida de seus filhos, trazendo em si um conceito de reponsabilidade que perpassa gerações.
    Mas nenhuma relação deve manter-se no aconchego do dinamismo do matriarcado para sempre, sob pena de engolfamento do ego e não reconhecimento dos relacionamentos no eixo Eu- Outro. A vivência do patriarcado proporciona a ruptura necessária para o crescimento equilibrado do ego. Na estrofe da música: “óh! Meu pai irrefutável, ele me disse, filho, às vezes pode parecer escuro, mas a ausência de luz é uma parte necessária”. Assim se faz pergunta, é necessária a que? E a resposta é coerente com as funções atribuídas ao arquétipo paterno, que tráz à tona a necessidade de instituição de leis e limites, da lógica e do social. Descritos por Buyngton (1996) como sendo um dinamismo “inspirado pelo princípio do dever, da organização, da codificação e hierarquização prioritária de tarefas, da tradição, da honra, da ordem, da responsabilidade, da justiça, da cobrança e da culpa” (pag.167).
    Desta forma a irrefutabilidade paterna faz com que indivíduo saia do jardim do Éden materno e possa aterrizar nas variáveis reais da vida, calculando possibilidades, reconhecendo riscos e percebendo seu calibre. A ausência de luz é inspirada nas entranhas da sombra, como tudo aquilo que não está na consciência, mas que tráz em si um força estruturante para o processo de individuação.
    Esta fala do dinamismo do patriarcado faz votos com os sacrifícios necessários ao desenvolvimento do ego. Para Jung (1973), o sacrifício faz com que o indivíduo possa liberta-se de um envólucro infantil e partir rumo a independência psíquica e aquisição de um eu maduro e adulto. O sacrifício tem o poder unir energias opostas, é o colocar na balança a luz e a sombra, e assim promover uma liberação de energia colossal.
    O experimentar das dificuldades pessoais, os limites da vida e do destino é um ritual de reverência do ego à vida, necessária para que ilusões, megalomanias e birras possam cicatrizar lentamente, dando lugar à resiliência e a capacidade de contar consigo mesmo, dando adeus à infância psíquica.
    O dinamismo do matriarcado e patriarcado bem vivenciados em relações afetivas tem o mágico poder transportar-se, como sendo atributos do outro, para imagens internas fortemente estruturadas. A introjeção desses valores culmina no terceiro dinamismo, o da alteridade. Tão sensivelmente cantorolado assim: “Olhando bem fundo pelo telescópio, você pode ver que seu lar está dentro de você”. Tudo aquilo que foi nutrido e vivenciado do lado de fora, agora tem poder de teletransporte, um teletransporte íntimo, intrasferível e sólido. A noção de lar, segurança, pertencimento agora é parte do ser e nada ,absolutamente nada, pode destituir esse lugar.
    O arquétipo da alteridade faz com que o sujeito possa distinguir o certo do errado, o bem e o mal e a gestão de todas as polaridades na aquisição da sabedoria do viver. Este dinamismo “é frequentemente intuitdo e mencionado como o segredo dos segredos e mistério dos mistérios” (BUYNGTON, 1996, pag.182), pois normalmente é vivenciado por pessoas que se aprofundam no mistério da vida, em que a estrutura introjetada dos processos matriarcais e patriarcais são pré- requisites fundamentais.
    O sentimento de possuir um lar interior é a capacidade de ser vaso para si mesmo e em um segundo plano, poder tornar-se abrigo para o outro. Segundo esta lógica, o toque sutil desse lugar tem um efeito em cascata, assim como uma pequena gota tem o poder de reverberar em distantes fronteiras de um rio. A certeza descrita na música de sempre pode voltar para o seu lar, paradoxalmente permite a ousadia de voos mais longos, mais criativos e mais dialógicos com a alma.



Conclusão

    O livro de Buyngton (1996), a Pedagogia simbólica, traz inúmeros exemplos de como poder vivenciar o processo educativo de diferentes forma, englobando diversos dinamismos e fazendo uso de diversos recursos para que o convite ao aprendizado possa ser vivido de mãos dadas com alma. A música muitas vezes consegue tocar esse lugar sagrado. A letra consegue realizer uma viagem no tempo, fotografando momentos estruturantes da personalidade de um indivíduo. A passagem da criança para o adulto, da menina para a mulher, do menino para o homem, enfim a grande passage e interlocução entre o mestre e o aprendiz.
   



Referências Bibliográficas

BUYNGTON, Carlos Amadeu B (1996). Pedagogia simbólica, a construção amorosa do conhecimento de ser. Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro.

JUNG, Carl Gustav (1961). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Editora Vozes, Petrópolis.

JUNG, Carl Gustav (1973). Símbolos da transformação. Editora Vozes, Petrópolis.



(Brasília/Agosto/2017)

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

A arte/expressão criativa como o “fio de Ariadne” da loucura.



Nome da Aluna: Carolina de Souza Leal
Nome da Tutora: Maria Elci Spaccaquerche

Entrada/Saída do Pavilhão Ulisses Viana, onde viveu por mais de 20 anos Arthur Bispo do Rosário. Colônia Juliano Moreira/RJ. Fotografia de Carolina Leal/outubro de 2016.

Apresentação

Em outubro de 2016, realizei uma viagem ao Rio de Janeiro. Diferentemente da maioria dos turistas que visitam a “cidade maravilhosa”, tracei uma rota diferente. Encantada pelo trabalho de Nise da Silveira e tomada por profunda admiração pelas obras de Arthur Bispo do Rosário, decidi visitar os dois hospitais psiquiátricos : Hospital Pedro II, que abriga o Museu de Imagens do Inconsciente e a Colônia Juliano Moreira, onde se pode visitar muitas obras de Arthur Bispo.

A fotografia presente na capa foi a grande inspiração para escrever esse artigo. Adentrar no pavilhão onde viveu Arthur Bispo do Rosário, sentir na alma toda a energia de um lugar que representou tanto sofrimento a outros seres humanos e deparar-me com esse fio azul na porta de saída (intervenção de uma artista plástica), me fez refletir sobre a arte e a expressão criativa como esse fio condutor, capaz de promover a comunicação entre o sujeito socialmente denominado louco e o mundo.

Feita esse contextualização, o que se pretende a seguir é articular a importância dos mitos, da produção e expressão artística e a psicologia analítica. Para tanto, partiremos do mito de Teseu, escritos de Nise da Silveira, Joseph Campbell, Jung, dentre outros.

1 – Para chegarmos - e sairmos - do Labirinto.




O psiquiatra e analista junguiano Carlos Byington faz uma interessante contribuição no prefácio da obra “Mitologia Grega” de Junito Brandão. Ele diz:

“Através do conceito de arquétipo, C.G Jung abriu para a Psicologia a possibilidade de perceber nos mitos diferentes caminhos simbólicos para a formação da Consciência Coletiva. Nesse sentido, todos os símbolos existentes numa cultura e atuantes nas suas instituições são marcos do grande caminho da humanidade das trevas para a luz, do inconsciente para o consciente. (...) Com o recurso da imagem e da fantasia, os mitos abrem para a Consciência o acesso direto ao Inconsciente Coletivo. Até mesmo os mitos mais hediondos e cruéis são da maior utilidade, pois nos ensinam através da tragédia os grandes perigos do processo existencial. Todavia, os arquétipos são ainda mais do que a matriz que forma os símbolos para estruturar a Consciência. Eles são também a fonte que os realimenta. Por isso, os mitos, além de gerarem padrões de comportamento humano, para vivermos criativamente, permanecem através da história como marcos referenciais através dos quais a Consciência pode voltar às raízes para se revigorar.”(Mitologia grega, vol.I, pág.9).

Esse pequeno fragmento coaduna com a concepção de mitos apresentada também por Campbell, que os entendia como “pistas” que buscamos para melhor compreendermos a experiência de estarmos vivos.

Para Jung, os mitos condensariam “experiências vividas repetidamente durante milênios, experiências típicas pelas quais passaram (e ainda passam) os seres humanos”. (SILVEIRA,1997). E ainda, seriam fenômenos psíquicos capazes de revelar a natureza da psique, cujos conteúdos poderiam surgir em sonhos e fantasias do sujeito, permitindo tecer inclusive considerações a respeito de sua condição psíquica.

Dito isso e sem a pretensão de esgotar o tema, fica explícita a importância do estudo da mitologia para a psicologia analítica e consequentemente para o desenvolvimento do trabalho junto aos clientes, considerando-se que os mitos transcendem a temporalidade, e conhecê-los pode nos permitir um encontro genuíno com nossos clientes, captando aspectos submersos em suas vivências.

1.1 O mito de Teseu – O fio de Ariadne como a salvação do herói.


De maneira bem sucinta sem entretanto suprimir aspectos elementares do mito de Teseu, vamos contá-lo a seguir. Antes de descrevê-lo porém, torna-se fundamental retomarmos a obra de Joseph Campbell, “O herói de mil faces”, para que se faça a base do que aprofundaremos nesse artigo.

Nessa obra Campbell, de maneira pungente e por que não dizer poética, fala da corajosa empreitada a que alguns de nós nos submetemos na tortuosa experiência do viver. E essa empreitada seria nada menos que o mergulho em nosso eu, enfrentando nossos monstros, submergindo e emergindo diferentes a cada desafio.

“É próprio da mitologia, assim como do conto de fadas, revelar os perigos e técnicas específicos do sombrio caminho interior que leva da tragédia à comédia. Por conseguinte, os incidentes são fantásticos e irreais: representam triunfos de natureza psicológica e não de natureza física.(...) Por vezes, a passagem do herói mitológico pode ser por cima da terra; fundamentalmente, é uma passagem para dentro – para as camadas profundas em que são superadas obscuras resistências e onde forças esquecidas, há muito perdidas, são revitalizadas, a fim de que se tornem disponíveis para a tarefa de transfiguração do mundo”. (O Herói de Mil faces, pag. 35).

Assim sucedeu a Teseu, um dos maiores heróis da Grécia. Filho do rei e da rainha de Atenas - Egeu e Etra - Teseu decidiu colocar fim ao sacrifício exigido ao seu povo pelo rei Minos (Rei de Creta) – a entrega anual de 7 jovens do sexo masculino e 7 jovens do sexo feminino para alimentarem o Minotauro.

Minotauro, o homem com cabeça de touro, era fruto da paixão de Pasífae (esposa do rei Minos) por um touro. Uma paixão atípica, oriunda de um castigo dos deuses. O rebento era motivo de vergonha para o rei Minos e portanto viveu toda sua vida preso num labirinto, devorando jovens que dali não conseguiam escapar.

Se pensarmos na origem da palavra paixão – pathos – que é uma palavra grega, que relaciona-se a excesso, a algo por vezes doentio, sofrimento, assujeitamento – vemos que a própria concepção do Minotauro já seria fruto do incontrolável no ser humano. Mas, voltando ao mito...

Teseu então encarou esse desafio, e tendo despertado o amor de Ariadne, a filha do rei Minos, recebeu dela a contribuição fundamental para que saísse vivo do labirinto. Um fio que o conduziria à saída, que marcaria o caminho de volta, depois de encontrar e matar o monstro. E assim o fez.

Por hora ficaremos aqui, não aprofundando em toda a simbologia envolvida nesse mito. Mais adiante, pegaremos alguns aspectos e que seja uma boa costura...

2. “A obra de arte e o artista” (Silveira, 1997).

Para adentrarmos um pouco no campo da arte e principalmente da expressão artística, a base para esse artigo será o capítulo VI – Relação da psicologia analítica com a obra de arte poética – das obras completas de Jung, vol.15 “O espírito na arte e na ciência”.

Nesse capítulo, Jung deixa claro que a psicologia analítica não pretende analisar a obra em si, mas os processos criativos e a estrutura da produção artística.

De acordo com Jung, há duas maneiras divergentes da origem de uma obra de arte. A primeira seria fruto do gênero introvertido, onde o criador teria consciência da finalidade de sua obra, certa intencionalidade. (Porque mesmo no que aparenta ser intencional pode haver algo inconsciente).

A segunda seria oriunda do gênero extrovertido.

“O gênero extrovertido é caracterizado pela subordinação do sujeito às solicitações do objeto. (...) A análise prática dos artistas mostra sempre quão forte é o impulso criativo que brota do inconsciente, e também quão caprichoso e arbitrário.(...)A obra inédita na alma do artista é uma força da natureza que se impõe, ou com tirânica violência ou com aquela astúcia sutil da finalidade natural, sem se incomodar com o bem-estar pessoal do ser humano que é veículo da criatividade.(...)A psicologia analítica denomina isto complexo autônomo. (...)trata-se de um acontecimento da natureza inconsciente que se impõe sem a participação da consciência humana e algumas vezes até contra ela, teimando em impor sua forma e efeito”. (Jung, pag.75 e 76).

E, ainda, Jung citado por Nise da Silveira “o processo criador, na medida em que podemos acompanhar, consiste numa ativação inconsciente do arquétipo, no seu desenvolvimento e sua tomada de forma até a realização da obra perfeita”.

Pensando no segundo modo do qual se originaria a obra de arte, é possível perceber o “descontrole” do sujeito sobre o surgimento de sua obra. O quão intensa é a emergência de conteúdos internos, que uma vez trazidos à consciência – mas nunca em sua totalidade – necessitam encontrar uma espécie de tradução, que seria a própria obra.

Nesse ponto, não podemos nos furtar de enxergar certa proximidade entre o estado de “paixão” e seus “excessos”, à força do que Jung denominou “complexo criativo” sobre o sujeito. Seria um momento de “loucura”? Uma busca por sanidade?

3. A arte e a expressão criativa como o “fio de Ariadne” da loucura.


Seria impossível e por que não dizer injusto, falar desses temas sem considerar o precioso trabalho de Nise da Silveira juntos aos usuários de saúde mental, que brilhantemente chamava clientes.

É dispensável, nesse momento, buscar grandes obras para dizermos quem eram e como foram ( e ainda são) tratados os chamados “loucos” em nossa sociedade. Ainda assim, vamos nos apropriar de uma breve citação escrita no prefácio do livro de Daniela Arbex, “O holocausto brasileiro”. O livro traz histórias reais dos internos do maior hospício do Brasil, localizado em Barbacena – mas poderiam ser histórias de todos os outros hospícios.

“Neste livro, Daniela Arbex devolve nome, história e identidade àqueles que, até então, eram registrados como “Ignorados de Tal”. Eram um não ser.(...) Quando elas chegaram ao Colônia, suas cabeças forma raspadas, e as roupas arrancadas. Perderam o nome, foram rebatizadas pelos funcionários, começaram e terminaram ali. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder”. (pag.13 e 14)

Despidos de identidade, desumanizados (Minotauros?) isolados num labirinto. Apartados da sociedade. Incomunicáveis. Inacessíveis.

Preocupada e desde sempre descontente com os rumos da psiquiatria no Brasil, Nise da Silveira encontrou na teoria junguiana o suporte necessário para a sustentação científica de outras formas terapêuticas, denominadas por ela própria, terapêutica ocupacional.

Na “Casa das Palmeiras” , fundada em 1956, a psiquiatra, utilizava-se de atividades que envolviam em essência a função criadora, que segundo ela própria,

“está mais ou menos adormecida em todo indivíduo. A criatividade é o catalisador por excelência das aproximações de opostos. Por seu intermédio, sensações, emoções, pensamentos são levados a reconhecer-se, a associar-se. A tarefa principal da equipe técnica da “Casa das Palmeiras” é permanecer atenta ao desdobramento fugidio dos processos psíquicos que acontecem no mundo interno dos clientes através das inúmeras modalidades de expressão. E não menos atenta às pontes que ele lança ao mundo externo, a fim de dar-lhes apoio no momento oportuno”. P.21 nise/imagens

O principal objetivo dessas atividades era cortar o ciclo de internações e reinternações dos clientes, mas sem dúvidas, incontáveis eram os benefícios. Tinta, argila, madeira, tecidos...Todos esses materiais eram utilizados para “dar voz” aos clientes. Todos esses materiais deixados à disposição do inconsciente desses sujeitos, resultaram, em muitos casos, em verdadeiras obras de arte. Desencadearam processos de “cura”. Cura da perspectiva de voltar a interagir, de se ver nas imagens. De ser visto. De sentir-se humano.

4 . Costurando tudo...


Retomando a foto inspiradora de um turbilhão de reflexões, vamos tentando costurar tudo que aqui foi apresentado. Teseu encarou sua jornada do herói e em parte dela, foi se haver com o Minotauro. Corpo de homem, cabeça de touro. Humano no corpo, animal na mente, tomado por instintos e pela impulsividade, pelos excessos.

Encarou a entrada no labirinto, mas para tanto, contou com o precioso fio que o traria de volta, de modo a não perder-se nesse mundo, nesse lócus de não razão. Ficou cara a cara e enfrentou o “seu monstro”, mas conseguiu sair.

Ao fim da visita aos hospícios, conhecendo e mergulhando nas histórias que migravam do horror à beleza, encontrar esse fio no pavilhão onde viveu Arthur Bispo, fez emergir, como se num “insight”, um processo curioso e criativo, que não sei se bem expresso em palavras nesse artigo.

Impossível não pensar nos horrores ali vividos. Ao mesmo tempo, impossível não pensar que em meio ao caos, a expressão criativa é capaz de salvar e tornar suportáveis condições muito adversas. Por essa razão, pensar no processo criativo e na arte como “fio de Ariadne”da loucura, pareceu-me uma bela ideia e uma bela imagem.

Referências Bibliográficas (formatar).
Jung, Vida e Obra. Nise, 1997
Holocausto Brasileiro. Daniela Arbex , 2013.
Jung Obra Completa, v.15. O espírito na arte e na ciência. O herói de mil faces. Cap. I Joseph Campbell

O poder do Mito . cap.V A saga do Herói.
O mundo das Imagens. Nise da Silveira.
Arthur Bispo do Rosário. Arte Além da Loucura.

Instituto Junguiano de Brasília – IJBsb

Curso de Formação em Psicologia Analítica – turma III

Título do Trabalho: A arte/expressão criativa como o “fio de Ariadne” da loucura.

Nome da Aluna: Carolina de Souza Leal Nome da Tutora: Maria Elci Spaccaquerche

Brasília, janeiro de 2017.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

ACOLHENDO O SONHAR NA CLÍNICA JUNGUIANA




Por:
Ana Inez Carvalho



Dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos. Ele fala conosco através
dos sonhos. Jung, 1934.
Aprender com os sonhos!... Talvez este tenha sido o primeiro movimento de minha psique em direção ao tema há cerca de 40 anos, quando ainda estudante de psicologia, deparei-me com o título A Linguagem Esquecida uma introdução ao entendimento dos Sonhos,Contos de Fadas e Mitos, de Erich Fromm. Vale registrar que se hoje pouco se fala em Jung na formação dos psicólogos, imagine então naquela época.... E, ainda que o livro tenha ido para a estante, ao entrar em contato com seu conteúdo passei a estar mais atenta ao que sonhava, a fazer registros de sonhos, a perceber a correlação com fatos e vivências. Nestes anos vieram formações, especializações, workshops de imersão, dando-me oportunidade de estudá-los um pouco mais e de trabalhar com eles na clínica. Agora, quando aqui me proponho a compartilhar um pouco deste caminho de aprendizado, é novamente este mesmo livro que me cai às mãos, que surge junto a outros que se reuniram ao longo dos anos. Ele, que resistiu bravamente às diversas investidas de doações e de inúmeras mudanças, se manteve junto a mim, como que para marcar algo fundamental e que não devia ser esquecido: os sonhos, assim como outras manifestações psíquicas, oferecem um caminho pelo qual podemos estabelecer uma comunicação com este lado noturno, em geral desconhecido, mas não menos vivo e atuante em nossas vidas e que expressa afetos, conflitos, anseios e sentimentos mais profundos de nossa alma.


Considerando que os sonhos apresentam enorme riqueza de possibilidades criativas contidas no inconsciente e quando aprendemos a entendê-los, com a ajuda dos símbolos, em razão de sua linguagem não ser a usual, e a relacioná-los com aspectos de nossa vida em estado de vigília, podemos nos harmonizar com um processo profundo que orienta e sintoniza possíveis caminhos. Nas palavras de Jung “... foi a experiência analítica que descobriu, de modo cada vez mais claro, as influências do inconsciente sobre a vida consciente da alma influências cuja exigência e significado a experiência havia ignorado até aqui. (...) Neste caso, a orientação ativa para um fim e uma intenção seria um privilégio não só da consciência, mas também do inconsciente, de tal modo que este seria capaz, tanto quanto a consciência, de assumir uma direção orientada para uma finalidade.(Jung, O.C. Vol VIII/2, § 491). Ao sonhar lidamos com passado,presente e futuro e seus possíveis significados.

No trabalho de acolher e compreender um sonho, de lidar com esta matéria prima, uma regra fundamental necessita ser observada: “... quando alguém me conta um sonho e pede a minha opinião digo a mim mesmo, antes de mais nada: Não tenho a mínima ideia do que este sonho quer significar’.” Após esta constatação posso me entregar ao trabalho da análise propriamente dita do sonho.(JUNG, O.C. Vol VIII/2, § 533). Pois na clínica o sonho é do sonhador. É único e específico à sua psique e como tal descreve a situação atual do sonhador: é um autorretrato espontâneo; uma imagem simbólica da atual situação do inconsciente.
Conforme Jung esta regra de isenção exige do analista um sólido e cuidadoso preparo em sua postura para tal: renunciando a qualquer ideia pré-concebida para com o que se apresenta, assim como humildade em confessar sua ignorância diante de cada novo sonho. Neste preparo continuado e a ser observado a cada momento do trabalho, são ainda requeridos empatia psicológica, capacidade de combinação, penetração intuitiva, conhecimento do mundo e dos homens e, sobretudo um saber específico que se apoia ao mesmo tempo em conhecimentos extensos e uma certa intelligence du coeur. Ressalta que não é preciso um sexto sentido para entender os sonhos, mas exige-se algo mais do que esquemas vazios, como os que se encontram nas coleções vulgares de sonhos ou aqueles que se desenvolvem sob a influência de ideias preconcebidas. (O.C.Vol.VIII/2, §543).
Lembro que nesta época do pensar de Jung nem havia ainda o Google!




Para o trabalho de análise do processo onírico Jung nos orientou com a estrutura dos sonhos, semelhante ao drama:
Exposição: Indica o lugar da ação, os personagens que nela atuam e frequentemente a situação inicial;
Desenvolvimento da ação: como o ego onírico lida com a situação (Atua? Assiste a cena?);
Peripécia ou culminação: De repente sou eu, estranhamento, não consigo mais controlar...

Solução (lysis): houve um desfecho? A situação ficou em aberto, em que cena o sonhador acorda? O conflito ficou em aberto ou é apresentado uma solução? Nem todos os sonhos nos oferecem uma lysis. Por exemplo nos pesadelos, a situação que produz tensão se desenvolve e cria
cada vez maior ansiedade a ponto de despertarmos, em geral tensos e aflitos.
Conforme os princípios junguianos em qualquer circunstância é possível perguntar-se "por quê?" e "para que?", pois toda estrutura orgânica é constituída de um complexo sistema de funções com finalidade bem definida e cada uma delas pode decompor-se numa série de fatos individuais, orientada para uma finalidade precisa . Isso nos leva às questões: qual é o significado deste sonho? Ele é um símbolo de quê? Que atitude consciente unilateral este sonho está tentando compensar? Para que tive este sonho? Em que ponto da minha vida estou fazendo isso?
Os sonhos comportam-se como compensações da situação da consciência em determinado momento. Seja numa função prospectiva: como um plano traçado antecipadamente, capaz de imprimir à consciência uma orientação totalmente diferente e bem melhor que a anterior. Ou uma função redutora: para minar uma posição excessivamente elevada, lembrando ao indivíduo a insignificância do ser humano. (O.C., Vol VIII/2, § 495 e 496).

O sonho proporciona à consciência o material inconsciente constelado para este fim e a meta da análise de um sonho é compreender o seu significado simbólico e as suas raízes arquetípicas. É um processo que não pode ser unilateral, mas estabelecido por um consenso que seja fruto de analista e analisando.
A primeira fase do trabalho de análise demanda ouvidos acolhedores e atentos à escuta do material que chega, percebendo-se a entonação, as emoções e expressões corporais. Se contado pelo sonhador, deve-se orientar para que seja na primeira pessoa e no tempo presente, como se lá estivesse. Daí a relevância de registros escritos, gravados, qualquer fragmento de lembrança que se recorde, pois assim estamos sinalizando para o inconsciente que damos importância ao sonhar, o que traz sutis e significativas mudanças, o que tem sido relatado por sonhadores que ao fazer registros perceberam que a produção onírica se tornou mais intensa, ou mais clara.


Lembrar-se dos sonhos é uma dificuldade que alguns enfrentam. Então uma atitude acolhedora, assim como quando chamamos um gatinho para junto de nós, delicadamente... costuma ajudar bastante. Também dedicar atenção ao processo do despertar, do sair da cama e iniciar mais um dia, assim como práticas introspectivas como meditação, exercícios de silêncio, caminhadas que proporcionem conexão com o interior, me têm sido relatadas
como facilitadoras do processo de recordar.



Contar em voz alta proporciona que o sonhador se aproprie de seu sonho: contar e acolher, para aprender a digerir o que chega. Captar a ideia básica, o tema. Daí o movimento de circum-ambulação em torno do tema ou da imagem, dele se aproximando mediante amplificações cada vez mais nítidas e vastas. Passear em volta deles ou, no dizer de Hilman tornar-se amigo de seu sonho. Isso me faz pensar em que? Como me senti no sonho? É assim mesmo que me sinto?


O exercício da imaginação ativa, diálogo estabelecido com as imagens oníricas objetivadas, como mandalas, desenhos livres, conexões corporais... nos permitem voltar ao mesmo espaço com perspectiva, profundidade e dinâmica. Buscar sentir a pulsação do sonho (ou da imagem): ele está vivo? O que flui? Tem direção? Isso proporciona à pessoa aproximar e focalizar o sonho com maior nitidez, fazendo um inventário de suas características, buscando delinear seus contornos e perceber o relacionamento intrínseco aos seus elementos. Importante ressaltar que na amplificação de ambos as associações pessoais do sonhador devem ser mais importantes que as culturais ou arquetípicas e a análise de um sonho jamais poderá ter um caráter definitivo; ao contrário, são fatos vivos que mostram constantemente novos aspectos.
O sonho ampliado e compreendido deve ser firmemente colocado na vida da pessoa. Talvez esta seja a função mais nobre do sonhar: trazer para o presente, para o que ocorre agora. Aprender a
receber dele o que nos dá. Receber e honrar!
Ao finalizar esta partilha, posso perceber que a terra fértil para a semente deste trabalho Acolhendo o Sonhar na Clínica Junguiana” conseguir brotar e desenvolver-se foi e tem sido estudar e vivenciar a prática dos princípios da Psicologia Junguiana, o que busco honrar pelo do muito que tenho recebido. Assim, como diz o poeta Drumond Amar se aprende amando, para mim Sonhar se aprende sonhando e Acolhendo o sonhar aprendo a
CRESCER!
Referências
Ana Inêz Vargas de Carvalho
Fromm, E. (1983). A linguagem esquecida uma introdução ao entendimento dos sonhos, contos de fadas e mitos. Octávio Alves Velho (Trad.). 8a. Ed. Rio de Janeiro: Zahar.
Gallbach, M. R. (2000). Aprendendo com os sonhos. Pe.Ivo Storniolo (Rev.). São Paulo: Paulus.
Jung, C.G. (2013). A natureza da psique. In Obras Completas de C.G. Jung (Vol 8/2). Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1928)
Sanford, J. A. (1988). Os sonhos e a cura da alma. José Wilson de Andrade (Trad.). 4a. Ed. São Paulo: Paulus
Whitmont, E. C. e Perera, S.B. (1995). Sonhos um portal para a fonte. Maria Sílvia Mourão Netto (Trad.). São Paulo: Summus.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Sete Minutos Depois da Meia Noite - SONHOS: UMA POSSIBILIDADE DE DIÁLOGO COM A ALMA

Contém Spoilers do Filme  - Sete Minutos Depois da Meia-Noite
Alda Ribeiro1






"Cada sonho é um drama curto." Jung (2014, p.239)
Resumo: Este artigo discute, por meio de análise fílmica, a importância dos sonhos no contexto analítico como possibilidade de intervenção. Ademais, aponta o quanto este é significativo como possibilidade da expressão da alma, por suscitar questões relacionadas aos arquétipos ou ao próprio indivíduo. E por fim, ressalta que esse pode ser um caminho para o reconhecimento de aspectos que estão no inconsciente e são desconhecidos ou rejeitados pelos pacientes no contexto clínico.


INTRODUÇÃO

Estudar Jung tem sido um caminho com momentos significativos de aprendizado em minha vida pessoal e profissional. Sua teoria oferece, de forma ímpar, segurança para atuarmos na clínica e nas demais áreas do campo da psicologia com profundidade a respeito do humano. À medida que a teoria vai se sedimentando, sentimo-nos permitidos e estimulados a usar nosso potencial criativo diante do outro. Nesse potencial criativo estão contidos o conhecimento do analista, suas experiências profissionais, a sensibilidade e a capacidade de fazer conexão com o que é trazido pelo paciente, seja por meio do discurso, seja por imagens vindas do sonho, do desenho ou qualquer outra forma imagética. Sendo assim, o profissional tem a oportunidade de utilizar caminhos interventivos tais como o discurso, contos de fadas, mitos, ou outras técnicas como a imaginação ativa e a Arteterapia.
O uso desse potencial criativo contribui de forma positiva em relação ao paciente em seu processo analítico. Nos últimos anos tenho buscado conhecimento a respeito da psicologia analítica, também conhecida como psicologia profunda, teoria essa fundamentada por CarlGustav Jung, o qual se debruçou por quase toda sua existência pela busca do conhecimento sobre o homem. Neste vasto contexto teórico que Jung nos apresenta estão inseridos os arquétipos e os sonhos. Nos meus estudos e leituras tenho percebido que os sonhos têm uma forma poética de expressar a alma, o que torna favorável a aproximação de nós mesmos. A literatura produzida por Jung tem demonstrado que, se tratando de sonho, é constatado que o campo analítico é uma poderosa ferramenta para intervenções e, também é promovedora de mudanças e ampliação da consciência.
Neste artigo, pretendo destacar alguns aspectos teórico e vivencial, seja na clínica e até mesmo nas experiências pessoais, sobre o tema "sonhos" à luz da teoria Junguiana. Alguns desses aspectos estão registrados nos encontros de Jung com outros pensadores, que ocorreram entre 1928-1930, momentos os quais foram de trocas de experiências entre profissionais que se empenharam em aprimorar o conhecimento sobre os símbolos e a refinar a escuta dos conteúdos trazidos por meio dos sonhos. Esses momentos foram consolidados no livro "Seminário sobre a análise dos sonhos".
É notório perceber que os sonhos, no que se refere à análise, nos auxiliam a dar passos em direção a desvelar os mistérios que encobrem a alma. Hillman (2010) descreve que a alma é “[...] antes de mais nada, uma perspectiva em vez de uma substância, uma perspectiva sobre as coisas em vez de uma coisa em si" (p.27). Vale considerar que neste texto será utilizado a expressão psique como sinônimo de alma, que segundo Jung tem o mesmo significado.
Há várias passagens apontadas por Jung que validam o interesse em abordar este assunto: uma delas é quando ele afirmou que "Só aquilo que somos realmente tem o poder de nos curar" (Jung 2002, p.43). Tal expressão tem reverberado em mim à medida que o desconhecido temido e as travessias feitas constantemente surgem para realizar descobertas sobre nós mesmos. Essa passagem pode ser o convite para reflexões a respeito do sofrimento que por vezes nos assola, nos instigando a buscar respostas ao seguinte questionamento: como seguir o caminho que de fato evidencia ser aquilo o que realmente somos? Como lidar com os nossos próprios conteúdos? Além disso, intensifica meu sentimento de fascínio por essa abordagem, que tem sido como a chama de uma vela a me guiar rumo às descobertas a respeito da alma, como ela se expressa e dialoga conosco, uma busca pelo sentido da vida.

A psicologia profunda vai além do conhecimento teórico-racional e apresenta-nos a possibilidade de conhecer o humano com o propósito de resgatar a alma a si mesma.
Lembramos que a alma deseja o tempo todo se expressar de diversas formas, seja na arte, na literatura, nas relações interpessoais, nas reflexões, no campo profissional e em tudo mais que é possível usar o potencial criativo. À medida que a alma se expressa, há uma tentativa de diálogo conosco, e quando damos espaço a esse diálogo, o afeto vai ganhando espaço e força no lugar ao que antes era sofrimento, ou, daquilo que era sentido e vivenciado como patológico. A psicologia analítica proporciona o reencontro com a alma que por vezes se perdeu em meio às dores e sofrimentos existenciais, às relações pautadas na violência ou às perdas afetivas. Quantos de nós já não se sentiu tocado com uma poesia, música, dança e então ficamos imersos em nossos devaneios? Quantos de nós já não se sentiu esvaziado e, ao mesmo tempo denso, ou se deparou com um paciente nessa condição? Sentimo-nos tocados pelo criativo que advém da criatividade e, ao mesmo tempo, tocado por nossas dores e, por vezes, nos compadecemos com a dor do outro. Os sonhos nascem no inconsciente e é uma forma profunda e criativa de a alma se expressar, que é de dentro para fora. Eles, os sonhos, desconstroem uma lógica conhecida pelo nosso mundo racional.
Pretendemos enriquecer nossa discussão do tema, sonhos, a partir da sétima arte, a qual nos convida a experimentar outra forma criativa de compreender o humano e suas relações consigo e com o mundo. Trata-se de uma breve análise fílmica do longa-metragem intitulado "Sete minutos depois da meia-noite". Esse, por sua vez, apresenta de forma poética, questões da alma diante de intenso sofrimento emocional em que a personagem principal Conor O`Malley lida com suas questões e conflitos.

O FILME


Sete Minutos Depois da Meia-noite”, originalmente intitulado “A Monster Calls” é estrelado por Sigourney Weaver (avó), Felicity Jones (mãe), Tobby Kibbell (pai). Como protagonista o ator Lews MacDougall (Conor O`Malley). Trata de um drama produzido em 2016, de nacionalidades: Estados Unidos, Canadá, Espanha e Grã-Bretanha; dirigido por Juan Antonio Bayona e escrito por Patrick Ness. No Brasil parece não ter sido um filme aclamado pelo público, todavia, percebemos que seu conteúdo se mostra rico em imagens e com um teor profundo e carregado de afeto.
O filme conta a estória do menino Conor O`Malley, 12 anos de idade. Esse jovem tem uma vida permeada por vários aspectos: a ausência da figura paterna, a hostilidade na relação
com os colegas de escola e os conflitos com a avó materna que é uma pessoa distante afetivamente.
Contudo, há um fato que a vida lhe proporcionou, sendo este o motivador da análise deste artigo: o protagonista foi golpeado com a doença da mãe a qual foi acometida pelo câncer em estágio terminal. Dessa forma, a estória ilustra a relação dele com a figura materna, e principalmente, como ele lida com aspectos desconhecidos de sua psique a partir dessa dura experiência. Conor, em meio a todo esse sofrimento, e como alternativa para dar conta desta fase, durante a aula, em um de seus devaneios, faz desenhos de monstros e começa a ter sonhos intensos e recorrentes, sendo o primeiro com a mãe que está prestes a cair em um precipício e o segundo com uma árvore gigante que conta histórias para ele. Ambos, ele e a árvore, estabelecem diálogos noites adentro. Nos dois sonhos recorrentes ele acorda às 00h07. Nesse sentido, essa trama nos inspira a abordar, além dos sonhos, questões relacionadas ao arquétipo materno, temática também muito comentada no universo junguiano.

A DISCUSSÃO
A partir dessas informações relativas ao filme, já podemos fazer a analogia com o que acontece em nossa vida pessoal e no consultório. Esse diálogo que a alma estabelece conosco por meio dos sonhos nos leva a perceber que a psique, em sua natureza, é sábia ao nos amparar, e ao reconhecermos esse amparo temos a possibilidade de compreender e integrar as mensagens que ela nos traz, fazendo nos sentir fortalecidos.
Apesar desse filme apresentar uma certa riqueza de imagens e detalhes - os quais serão descritos no decorrer deste texto- e abrir muitas possibilidades para discussão, pretendemos nos ater a um eixo: os conteúdos dos sonhos de Conor. Neste eixo estão contidas questões arquetípicas, como a relação com sua mãe e consigo.

Os arquétipos são elementos presentes no inconsciente coletivo que, por sua vez “repousam em uma camada mais profunda que não tem origem em experiências pessoais, sendo inata" (Jung 2014, p.12). Pieri (2002) afirma que "arquétipos são imagens universais presentes desde os tempos remotos na psique humana de um inconsciente coletivo que seria seu depositário" (p.44). Jung (2014) aponta, ainda, que o ser humano na medida em que não constitui uma exceção entre as criaturas, possui, como todo animal, uma psique pré-formada
de acordo com sua espécie, a qual revela também traços nítidos de antecedentes familiares, conforme mostra a observação, porém, ele ainda afirma que os arquétipos são determinados quanto à forma e não quanto ao conteúdo (p.86). Jung (2014) vai dizer:
"Já que não podemos negar os arquétipos ou torná-los inócuos de algum modo, cada nova etapa conquistada na diferenciação cultural da consciência confronta-se com a tarefa de encontrar uma nova interpretação correspondente a essa etapa, a fim de conectar a vida do passado, ainda existente em nós com a vida do presente, se este ameaçar furtar-se àquele. [...] aparecem como manifestações involuntárias de processos inconscientes, cuja existência e sentido só pode ser inferido" (2014, p. 159).
Sendo assim, é possível pensar que a manifestação arquetípica pode funcionar como uma mola propulsora para a percepção de alguma questão importante de si mesmo. Partindo do ponto em que percebemos algum aspecto sobre nós mesmos, aspectos estes que nos trazem desgaste emocional, temos a possibilidade de mudança de caminho.

SOBRE O ARQUÉTIPO MATERNO 


Jung (2016) explana a respeito do arquétipo materno. Ele assegura que existe uma infinidade de aspectos, e apesar da diversidade descrita pelo mesmo, neste texto vou me restringir àquelas que aparecem no filme: a mãe, a avó, a madrasta e a sogra; e em sentido amplo, a Igreja, a Árvore e a Terra. Há, também, diversos símbolos nefastos trazidos por Jung e aqui vou me ater ao túmulo, à morte, ao pesadelo e ao pavor infantil. Todas indicam traços essenciais do arquétipo materno. (p.87). Nesta mesma obra, Jung aponta que o arquétipo materno tem uma peculiaridade: "o maternal", aquele que cuida.
Com esses apontamentos, percebo a importância desse arquétipo, aquele que cuida oferece continência e proporciona condições para o crescimento. Jung (2016) aponta que a figura da mãe pode ser universal, contudo, a imagem muda completamente na esfera particular. Nos sonhos de Conor, há a continência na medida em que aparece uma figura que diz saber sobre ele, que no caso é a árvore, e indica o caminho para que ele reconheça, cuide e encontre uma saída para aliviar sua dor. Jung (2016) aponta que:
não é apenas da mãe pessoal que provêm todas as influências sobre a psique infantil descritas na literatura, mas é muito mais o arquétipo projetado na mãe que
outorga à mesma um caráter mitológico e com isso lhe confere autoridade e até mesmo numinosidade." (2016, p. 89)
Ao retomarmos a discussão e os aspectos do filme, percebemos que em meio ao silencioso sofrimento, O`Malley acompanha a decrepitude do corpo de sua mãe e intimamente percebe que em breve ela partirá sem qualquer possibilidade de reversão do curso da vida. Um jovem isolado do mundo social, com o distanciamento da figura paterna e da avó materna, não possui espaço de afeto para compartilhar sua dor. Ele sabe que com a morte de sua única fonte, referência de afeto, terá que lidar com a mudança na dinâmica de sua vida que é morar com sua rude avó materna.
O desdobramento do filme nos lembra que a psique busca incessantemente uma forma de se comunicar. A alma de Conor apresenta duas formas de encontrar caminhos para dar conta desse conflito. A primeira é por meio dos desenhos e a outra é por meio dos sonhos. A personagem experimenta sucessivos episódios de sonhos, que apontam alternativas para lidar com essa perda. Essas alternativas nos levam a entender, que pode ser o que Jung traz a respeito das influências que transcendem à mãe pessoal, que são os aspectos arquetípicos e do caráter numinoso2. A mãe pessoal vai embora e o que permanecerá são os registros dessa vivência e a experiência com o numinoso.



OS SONHOS COMO CAMINHO PARA DIALOGAR COM A ALMA



A respeito dos sonhos Pieri (2002) vai trazer que "o sonho é a ação da imaginação durante o sono" (p. 478) e que a psique consciente e o sonho (e, portanto, o inconsciente) estão entre si em uma relação do tipo compensatório." (p. 478) De certa maneira, a personagem encontra uma forma compensatória para aliviar sua dor. Jung (2014) diz que a psique atua para nos lembrar que somos, pois, o inconsciente teme ser esquecido (p. 41). Nesta mesma obra, ele aponta que "os sonhos de crianças estão entre os fenômenos mais interessantes da Psicologia Analítica por se conectarem com as figuras parentais. (p. 41). Os sonhos do protagonista apresentam essa conexão na medida em que tem sonhos recorrentes com a mãe.
O que de fato contam os sonhos da personagem? Aparecem dois tipos de sonhos distintos como fatos marcantes: o primeiro é ele tentando segurar a mãe para que ela não caia
em um precipício no momento em que o chão se abre. Após isso acorda sempre no mesmo horário, 00h07, como que em um sobressalto de um pesadelo. Já o outro sonho com conteúdo recorrente é de uma árvore gigante a qual estabelece uma comunicação com ele.
Jung (2014) aponta para uma importante questão a respeito das figuras que aparecem no mundo onírico ao mencionar que há princípios subjetivos e objetivos. Quando o sonho está no nível subjetivo, se refere única e exclusivamente ao próprio sujeito, e no nível objetivo se refere ao objeto, ou seja, outra pessoa. Nesse sentido Jung menciona que quando no sonho aparece alguém do seu convívio íntimo da atualidade, certamente os conteúdos referem-se àquela pessoa. Para as situações em que há um contato distante ou desconhecido, é bem provável que sejam conteúdos do próprio sujeito (p. 50).
Podemos, então, fazer a analogia com o que acontece em nossa vida pessoal e no consultório. Esse diálogo que a alma estabelece conosco por meio dos sonhos nos leva a perceber que a psique, em sua natureza, é sábia ao nos amparar. Ao reconhecermos esse amparo temos a possibilidade de compreender e integrar as mensagens que ela nos traz, sentimo-nos fortalecidos. Figuras desconhecidas ou não, temos a possibilidade de estarmos próximos de nós mesmos e auxiliarmos os pacientes no conhecimento de si mesmo em camadas mais profundas.
De certa forma, podemos afirmar que esses sonhos de Conor com a mãe diz respeito ao seu momento que é a iminência de uma perda. Ele deseja segurar a mãe, mas a psique lembra que isso não está a seu alcance. Esse lembrete vem por meio das imagens oníricas quando ele tenta segurar a mãe para que não caia em meio ao chão que se abre como um precipício. O sonho foi um caminho encontrado por sua psique para entrar em contato com a sua realidade e prepará-lo para o processo ainda mais doloroso que estava por vir que era a morte de sua mãe.
Em relação à atuação na clínica, os sonhos trazidos pelos pacientes, muitos deles, norteiam as intervenções e apontam a direção que o paciente está caminhando e, por sua vez precisamos seguir como profissionais. Jung (2014) afirma que os sonhos são fatos objetivos e é importante que busquemos as evidências das questões trazidas pelos pacientes por meio dos sonhos. Caso contrário podemos esbarrar em julgamentos nossos ou opiniões equivocadas (p. 27).
O pensamento apontado pela psicologia analítica quanto ao mundo inconsciente, nos faz refletir que os sonhos são uma maneira encontrada pela psique de nos apontar, também, para onde estamos, o momento presente e o que está por vir. Em relação aos fatos premonitórios ou pré-cognitivos, apesar de só termos certeza quando os fatos vêm à tona,
podemos refletir que é uma forma de nos preparar e nos fortalecer antes da concretização. É possível constatar isso na experiência de consultório na medida em que os pacientes revelam suas experiências com os sonhos premonitórios os quais só são confirmados quando há a concretização.
A outra sequência de sonho recorrente do protagonista foi igualmente significativa: da árvore gigante, uma árvore-monstro. Curiosamente essa figura aparecia em seus desenhos e se assemelhava à uma antiga árvore que ficava em um campo nos fundos da casa de O'Malley. Ao lado dessa árvore, que denotava ser antiga, grande e com frondosa copa, havia um cemitério e uma igreja. Todas essas figuras já mencionadas anteriormente, segundo a psicologia analítica, são representantes do arquétipo materno. A árvore-monstro que aparece no mundo onírico de Conor conta 3(três) histórias e determina que o sonhador é quem contará a quarta história. Esse "monstro" diz ser uma estória, que é a verdade, a qual o próprio sonhador esconde.
Os sonhos de nossos pacientes contam histórias que o inconsciente traz, uma forma poética e criativa. Nessas histórias o paciente reconhece e aceita a sabedoria de sua psique, sente-se fortalecido e amparado. Dessa forma caminha com atentos passos rumo à integração de aspectos pessoais desconhecidos ou rejeitados por eles e isso pode acontecer a qualquer tempo. Com isso, o paciente em processo analítico percebe a importância dos seus sonhos e o quanto eles os encorajam à autoaceitação e os auxiliam no autoconhecimento e, principalmente o amor por suas próprias almas. A respeito disso Jung (2016) afirma que:
"Quem caminha em direção a si mesmo corre o risco do encontro consigo mesmo. O espelho não lisonjeia, mostrando fielmente o que quer que nele se olhe; ou seja, aquela face que nunca mostramos ao mundo, porque a encobrimos com a persona, a máscara do ator. Mas o espelho está por detrás da máscara e mostra a face verdadeira." (p. 29)
A citação acima indica que embora tentemos por vezes evitar, experimentamos durante nossa existência o desafio de observarmos e sentirmos o que há por detrás desse espelho e, por consequência os pacientes também. A partir deste ponto é perceptível verificar como o sonho nos possibilita esse olhar. De acordo com Jung (2007), "O autoconhecimento de cada indivíduo, a volta do ser humano às suas origens, ao seu próprio ser e à sua verdade individual e social, eis o começo da cura da cegueira que domina o mundo de hoje” (Prefácio).
Nesse diálogo com a psique e o enxergar dessa outra face trazem outro desafio: o que fazer com o que percebemos em nossos pacientes? Como auxiliá-los a atuar nessas percepções? Em outra passagem Jung (2014) apresenta que "Um sonho nunca diz o que se deve fazer. [...] A natureza nunca sugere. Você deve conhecer os detalhes da condição consciente para poder interpretar o sonho, pois o sonho é construído de tudo o que não vivemos ou não tornamos conscientes” (p. 209). Dessa forma ao chegar nas imagens oníricas da consciência e quando levadas à análise, o analista tem a possibilidade de realizar as intervenções importantes para aquele momento sempre atento aos limites e fronteiras do paciente.
Na quarta história, a árvore-monstro indica que o jovem conte a verdade que ele tenta esconder de si. Qual é a verdade de Conor? A verdade é que ele não aceita a partida da mãe. Ao mesmo tempo ele reconhece desejar que isso tudo acabe. E isso só acabará com a morte da sua única referência de afeto. No diálogo com sua psique, por meio dos sonhos, ele enxerga a dualidade: o desejo pelo fim do sofrimento, nem que isso lhe custe a morte de sua mãe. Ao assumir isso para ele mesmo e para sua mãe, liberta-se do conflito em relação à dualidade mencionada anteriormente. Concomitante a isso acontece o desenlace da mãe, às 00h07. Lembramos que meia-noite é o que separa o dia da noite, a passagem, a travessia e podemos relacionar com a morte, o recomeço, a renovação do dia. Na esfera da psicologia analítica, quais os demais sentidos da árvore além do arquétipo materno? Pensamos que a árvore pode representar a figura da grande mãe e, também, a história de uma família. Sobre família Jung (2014) vai dizer:
"[...] algumas pessoas podem seguir fazendo bobagens pela vida na forma mais surpreendente e aparentemente nada acontece a elas. Mas alguma acontece, em algum lugar, com a família, talvez; sem dúvida seus filhos sofrem e têm de pagar o prejuízo. Isso se liga ao fato de que a vida humana não é nada em si mesma; é parte de uma árvore familiar." (p. 311)
Ao mesmo tempo em que os filhos custeiam as dívidas de seus ancestrais, ao ser um galho de uma árvore, experimentam a chance de reconhecer que não estão sós, que carregam todas as histórias dos seus antepassados. Podemos dizer que Conor representa um galho de uma árvore, e isso confere a ele a sensação de pertencimento por fazer parte daquela família. Conor ao final do filme, após a partida de sua mãe, percebe que não está sozinho e toma consciência do quão significativa é a conexão com sua mãe. Essa reflexão acontece no momento em que recebe um livro de desenhos em aquarela cuja autora é sua mãe, e desconhecido por ele até então. As imagens contidas no caderno são semelhantes às imagens dos sonhos e neste momento reconhece a conexão com sua mãe.
Ainda com relação aos sonhos trazidos pelos pacientes, é fundamental a atenção do psicólogo à sequência desses. Isso faz significativa diferença no curso da análise. Jung (2007) nos revela que precisamos ficar atentos quando um paciente traz sonhos com temática recorrentemente. Segundo ele, “isso aponta que falhamos na análise e que esta pode estar incompleta [...] assim como a interpretação certa é recompensada pela renovação da vitalidade, a errada é condenada pela detenção da resistência, pela dúvida e, principalmente pela obstrução de ambos os lados" (p. 102).
Em relação ao filme, Conor, não fazia análise, no entanto, a estória ilustra que ele mesmo conseguiu lidar com seus conteúdos por meio do diálogo com sua alma. Os sonhos da personagem tinham uma função: o de compensar aquilo que não damos conta durante o dia. Jung (2016) vai dizer que "os arquétipos aparecem nos mitos e contos de fadas, bem como no sonho” (p.154) e que "a psique é um sistema de autorregularão"(Jung, 2007, p.53).
Essa vivência da personagem com seus sonhos, e por vezes fantasias, nos faz lembrar que para a psicologia analítica as definições dos termos, por ela utilizados, têm seu lugar e seu valor. Contudo, é na experiência pessoal que enxergamos e experimentamos o real sentido. No que se refere à questão da alma percebemos que a reduziríamos com definições de seu significado. Torna-se intenso à medida que falamos sobre ela e a cultivamos. A respeito disso, Hillman explana que:
"Engendrar alma requer sonhar, fantasiar e imaginar. Viver psicologicamente significa imaginar; estar em conexão com a alma é viver em conexão sensorial com a fantasia. Estar na alma é experimentar a fantasia em todas as realidades e a realidade essencial da fantasia." (2010, p.81)
Essas questões nos fazem refletir que os sonhos revelam o movimento da psique e, ao analisar a sequência dos sonhos de um paciente, como psicólogos, nos é permitido fazer ajustes de supostas percepções nossas a respeito da dinâmica psíquica do analisando e, ainda, do próprio paciente para consigo. Avaliamos que os ajustes não significam necessariamente erros cometidos, mas sim percepções que analista e analisando não estavam no momento de enxergar, absorver.
Os sonhos dos pacientes, bem como as imagens neles contidas vão confirmando ou refutando as hipóteses levantadas durante o processo analítico: "Os sonhos são mensagens enviadas do inconsciente para mostrar o que realmente está acontecendo lá" (Jung, 2014, p. 223). Em outro momento nos salienta Jung (2014): "A natureza nunca é diplomática. Se a natureza produz uma árvore, é porque quis fazer uma árvore" (p. 51). Dessa forma, somos capazes de reafirmar que a psique é sábia em sua natureza e tem seus desejos e propósitos. Nós, a depender da nossa dinâmica pessoal, nos afastamos ou nos aproximamos daquilo que a natureza psíquica quer nos comunicar. Com o passar do tempo, à medida que integramos a aspectos desconhecidos, vamos nos tornando capazes de compreender a linguagem dos sinais da natureza dos sonhos e, por sua vez a linguagem da alma.
A respeito disso Jung (2014) aponta que "se você se livra de qualidades que não aprecia negando-as, você se torna cada vez mais inconsciente do que você é, você se declara cada vez mais inexistente, e seus demônios engordam cada vez mais" (2014, p. 71). Em relação ao protagonista, uma hipótese é que ele tivesse medo de reconhecer seus próprios sentimentos e percepções. Esta reflexão oportuniza relacionar com a experiência em consultório que por vezes trata de um momento no qual o paciente chega desvitalizado, sem alma, pois a alma nos abandona quando é dado mais importância ao mundo exterior, seja pessoas ou fatos, e isso promove a desconexão com sua psique. O discurso do paciente a respeito de sua dinâmica relacional com o mundo social e familiar, aliado às questões suscitadas pelo inconsciente, auxiliam na nossa compreensão que aparece nos sonhos e o que a alma do analisando quer comunicar.

CONCLUSÃO
Trailer


Em relação aos sonhos, percebemos que é comum acontecer no contexto clínico, o paciente trazer sonhos com a mesma temática em sessões seguidas. Cabe a nós profissionais estarmos atentos às mensagens que vêm do inconsciente desse paciente e nos portarmos como instrumento facilitador da compreensão da linguagem da alma expressa por meio do contexto onírico. Constatamos que o filme ilustra o que acontece conosco e com nossos pacientes quando os "demônios param de engordar". A escuta atenta às mensagens da alma oferece espaço à coragem e ao amor próprio. Este por sua vez ocupa o lugar do medo de olhar para si mesmo. O` Malley revela a transformação que acontece no momento em que se mostra atento às mensagens vindas do inconsciente, momento em que ele revela a si mesmo e à mãe que teme pela sua morte. Quando escutamos nossa alma, nos movimentamos em direção a nós mesmos e começamos a reconhecer e compreender aspectos da nossa psique. Com isso temos
a possibilidade de mudança na forma de olhar para dentro de nós mesmos e assim mudarmos nossa postura na relação com o mundo.
Ainda com relação ao filme, percebemos que o mesmo conseguiu encampar diversos aspectos discutidos no mundo da psicologia analítica. Na narrativa, há predomínio da dinâmica psíquica nos sonhos que tinha como foco a relação de O`Malley consigo mesmo e com a mãe. Além disso, essa trama ilustra por meio de imagens e diálogos o que é frequentemente comentado pelos analistas, que é a beleza que tem a alma e o quanto ela é sábia e nos ensina a irmos ao encontro de nós mesmos. A experiência de dialogarmos com nossa alma não necessariamente muda um fato gerador de sofrimento, mas certamente quando reconhecemos aspectos nossos e os aceitamos, temos a possibilidade de lidarmos de forma diferente conosco, ainda que se trate de uma marcante experiência.
Com isso percebemos que nada está fora do lugar e nada ocorre sem propósito, assim como o sofrimento. O desafio está em perceber a delicadeza da alma. "A consciência é como um farol que percorre o campo; somente os pontos que são iluminados se tornam conscientes." (Jung, 2014, p.68). Podemos aproveitar esses momentos de luminosidade como fortalecimento para enfrentarmos os tempos de obscuridade e os sonhos estão para nos guiar nessa caminhada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PIERI, P. F.(2002).
Dicionário Junguiano. Petrópolis. Vozes.
1 Alda Ribeiro é psicóloga clínica, com especialização em psicologia analítica pelo Instituto Junguiano de Brasília e candidata a analista junguiana pelo Instituto Junguiano de Brasília filiado à Associação Junguiana do Brasil - AJB e da Association for Analytical Psichology - IAAP.

2 Numinoso - está na experiência do sagrado e, portanto, a constituição de um mysterium tremendum que inspira veneração e temor. (Pieri, 2002, p. 347)