terça-feira, 4 de setembro de 2018

A Selfie e o Self.



Por:

Denise Vourakis Dias

Sinopse: a partir do advento das tecnologias digitais, as câmeras fotográficas passaram a ser utilizadas de maneira comum e popular, em telefones celulares. A internet e as redes sociais tornaram-se, do mesmo modo, o lugar de exposição para estas imagens. O artigo explora a relação entre as imagens produzidas, suas motivações e relação com a psique humana, arquétipos e complexos que comparecem tanto no ato de fotografar quanto no compartilhamento dessas imagens, particularmente a selfie ou autorretrato. 

Uma bela paisagem, um dia de sol, céu azul, mar transparente, a mata quase intocada, a pequena ilha de areias brancas. Rochas se enfileiram ao redor da praia, pequenas e grandes, visíveis e submersas, inúmeros peixes podem ser observados bem ali no raso, ao redor das pedras. Aos poucos os turistas vão chegando: são escunas, lanchas pequenas, outras maiores e iates também ancoram no local. A paisagem de antes se transforma. Muitas pessoas fotografam com as câmeras de celulares. Alguns fotografam a paisagem, outros fazem fotos submersas, alguns fazem selfies, sozinhos, em pares e em grupos.

 A fotografia tornou-se popular com a chegada das câmeras de celulares e ao mesmo tempo tornou-se um fenômeno. Existem muitos recursos e tecnologias sofisticados, que fazem inclusive fotos submersas, facilitando o usuário, geralmente de modo simplificado. Pessoas comuns tornaram-se repórteres das próprias vidas, as viagens e eventos são narrados, fotografados e postados na internet, há também aqueles que revelam intimidades. Geralmente, a maioria das pessoas têm o habito de se fotografar, de diferentes maneiras, em diversos lugares, podendo, nessa tarefa se prolongarem até por muito tempo, retratando a própria imagem, registrando aquele momento.  Às vezes deixam de viver o momento, o evento, a paisagem, o lugar e permanecem centrados nas fotografias, dando menor importância ao que acontece a sua volta. Através da postagem em redes sociais, existe a possibilidade do reconhecimento público da imagem, sendo inclusive um meio de alcançar certo prestígio ou admiração.
 
Diversos nomes da história da humanidade foram retratados e podemos saber como eram esses personagens históricos através de esculturas e pinturas encontradas em museus ou praças públicas.  Era necessário ter alguma condição material para encomendar do artista local ou para trazer um artista renomado, para executar o registro para a posteridade. Na renascença, os retratos eram executados por pintores que alcançaram, possivelmente, visibilidade em suas carreiras; eles também produziram autorretratos e seus rostos tornaram-se conhecidos. Porém era a nobreza que encomendava seus ofícios, imagens de homens e mulheres, heróis e damas, geralmente pessoas de renome. Os artistas se utilizavam de uma técnica que era quase uma imitação de realidade. De acordo com Umberto Eco, ”O uso da perspectiva na pintura implica, de fato, a coincidência, de invenção e imitação: a realidade é reproduzida com precisão, ao mesmo tempo que de um ponto de vista subjetivo, do observador, que em certo sentido adiciona a exatidão do objeto à beleza contemplada pelo sujeito” (P.194).


A ideia de atrair reconhecimento através da imagem pessoal sempre existiu, é arquetípico, tendência pré-existente, viva no espírito humano. Tornar a própria imagem mais atrativa ou propaga-las com essa intenção faz parte dessa ideia.  Retocar a própria imagem hoje é possível através da tecnologia das câmeras e dos programas de edição, da mesma maneira que se fazia na renascença, apenas se utilizam outros recursos. É possível embelezar a imagem e sair bem na foto.
Podemos afirmar que na maior parte do tempo é a persona, enquanto arquétipo, que está sendo retratada e se apresentando no espaço virtual. Tanto a persona quanto o ego encontram-se na consciência, porém os conteúdos inconscientes não estão livres de influencia-los de alguma maneira.  Para C.G. Jung a persona funciona como máscara social, ocultando de fato a verdadeira natureza do indivíduo, ela se adequa ao coletivo. Um sacrifício se dá, obrigando o eu (ou ego) a se identificar com a persona, muito embora exista um mundo particular no interior do indivíduo (Jung, 2013). A persona atua, mas o verdadeiro eu, está em outro lugar. A aparência da imagem pode ser muito diferente de seu conteúdo.

O registro pela pintura ou desenho (menos comum) cedeu lugar para a fotografia, no século 18, tornando-se domínio do homem contemporâneo. Roland Barthes, em “A Câmara Clara” realiza um estudo filosófico sobre a fotografia, desde seus primórdios e analisa diversas imagens. Menciona que a fotografia analógica, com seus laboratórios que revelavam as imagens capturadas pela câmera, tem suas bases na alquimia, (o texto é anterior ao advento da fotografia digital). Com relação ao retrato, por onde a fotografia interceptou a pintura, ele cita: “A Foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam, aí se deformam. Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que me julgo, aquele que gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte. (P.17) ”. Considerando que nas selfies, o fotógrafo e o fotografado são a mesma pessoa, o campo se torna ainda mais cerrado. Aquele que se fotografa além de criar julgamentos a respeito de sua imagem, cria fantasias sobre si.


As representações do eu que estão carregadas de tonalidade afetiva, estão relacionadas a complexos, que derivam de arquétipos, que por sua vez escapam ao controle da consciência. Verena Kast em “A Dinâmica dos Símbolos”, define o eu, citando Jung, como sendo a “expressão psicológica da união firmemente associada de todas as sensações físicas comuns” (P.24), as sensações nos chegam pelos sentidos que por sua vez percebem a realidade de maneira subjetiva e pouco racional, o complexo do eu envolve o corpo e o sentimento do corpo. Segundo a mesma autora, a vivência da identidade, seu desenvolvimento, o sentimento de vitalidade, a atividade do eu e o sentimento de estar vivo pertencem ao complexo do eu; a identidade possui fronteiras que são transitórias. A imagem que cada um tem de si pode se libertar da persona e alcançar substratos de outra natureza através do confronto com essa mesma imagem. Algo se revela e produz no outro algum efeito. 

Em ”Psique e Imagem”, Gustavo Barcelos fala acerca de emoção e imagem relacionando-as: “Vivemos emocionalmente; as emoções estão por dentro de (ou no fundo) de tudo, ainda que possam estar exiladas em alguma câmara escura da alma, inconscientes, sem contato, sem registro, banidas, não reconhecidas. ” (ebook).  No texto, a criação de imagens é descrita como trabalho da psique humana, indo sempre além de um conceito, não deve ser interpretada, existem nela muitos significados que se relacionam em sua complexidade. A psique se faz representar através das imagens, de modo indireto e alegórico. Mesmo em imagens diretas há sentidos encobertos. O autor afirma que após o advento da descoberta do inconsciente, as imagens se tornam um grande campo de pesquisa, uma vez que existe uma conexão entre ambos. As imagens estão presentes em sonhos, fantasias, na arte, nos mitos e seguindo o texto: “as imagens são o meio pelo qual toda experiência se torna possível. A imagem é o único dado ao qual há acesso direto”. Muitos significados correlacionados estão presentes nas imagens conferindo a elas grande complexidade.

 Imagem e fantasia estão interligadas, a nível inconsciente imagens são produzidas, alcançam a consciência, embora não seja possível decifra-las completamente. O emergir da imagem, seja em atividade criadora consciente, na forma de um sonho ou em devaneio, reflete o movimento da libido. A libido se expressa na forma da fantasia. O que é projetado pela imagem libera conteúdos do inconsciente para a consciência, produzindo a função compensatória. O ato de compreensão desses conteúdos simbólicos gera a função transcendente, que é transformadora. A personalidade pode se transformar através da função transcendente, compreendendo seus símbolos, atenuando o confronto entre opostos. 


Portanto, as imagens produzidas em atividades criadoras incluem imagens fotográficas, como as selfies. Uma multidão de selfies são despejadas diariamente nos espaços virtuais.   Várias experiências podem surgir do ato de se fotografar e se expor, fantasias a respeito de si podem estar presentes na produção dessas imagens. O complexo do eu, com seus conteúdos afetivos, pode estar presente assim como a persona, a máscara social; na medida que ocorre a exposição, interpretações podem surgir, tanto dos espectadores/observadores, quanto da própria pessoa, que ao se ver novamente, cria novas fantasias, experimentando outras percepções; é possível que este processo dinâmico resulte em alguma transformação. A busca de reconhecimento público pode trazer revelações para o próprio indivíduo, tanto ele pode ser aprovado, quanto desaprovado. A persona pode não ser o suficiente para encobrir outras partes inconscientes. A selfie tenta encobrir algo, porém esse algo não se esconde totalmente, revelando segredos. Também guardamos fantasias a respeito de nós mesmos, também possuímos ambivalências e aspectos reprimidos. Existe o ideal do eu que se encontra fora de alcance, mas que ao mesmo tempo serve de norte para a construção de uma identidade. Segundo Verena Kast, tanto o ideal do eu quanto o complexo do eu se transformam incessantemente na medida em que existe o confronto com a sombra (P.76). Para Jung, a sombra é individual, mas compreendida enquanto arquétipo, por ser arquetípica tem suas bases no inconsciente (Jung, 2013:19). Uma vez que ela se manifeste, conteúdos inconscientes estarão presentes. É justamente esse confronto que amplia a consciência, a função transcendente, compensatória, refaz as fronteiras entre consciente e inconsciente, alcançando a fonte de tudo, que é o si-mesmo. Verena Kast, afirma que o complexo do eu, como todo complexo se liga a um ponto que é arquetípico, no caso ao si-mesmo; “o si-mesmo é entendido como personalidade atual e futura, ele revela no decorrer da vida nosso oculto objetivo de vida por meio do desenvolvimento do complexo do eu, desenvolvimento este também intencionado pelo si-mesmo” (P.27). Durante a vida, esse ajuste se dá muitas vezes, o complexo se constela e se confronta gerando transformações na identidade.  Para Jung, “o Si-mesmo, irracional e indefinível, o eu não se opõe, nem se submete, simplesmente se liga, girando em torno, como a terra em torno do sol – meta da individuação, imagem na qual estamos incluídos apesar de não ser possível descrevê-la” (JUNG, 2013: 405).



Concluindo, embora seja um fato novo, podemos pensar na relação que um indivíduo desenvolve com a sua própria imagem, muitas vezes registrada por ele mesmo, através de meios tecnológicos e compartilhada também por ele, nas redes sociais e o efeito que as interpretações, reações do outro possam lhe causar.  Podemos considerar também as fantasias criadas a partir dessa experiência e as compensações geradas. O fato novo, produzido pelas possibilidades tecnológicas também incide a nível coletivo, ampliando o acesso às imagens que são geradas e modificando padrões de comportamento. Podemos pensar que não capturamos a imagem, mas que a imagem nos captura. Uma nova frente de estudo, de ampliação na compreensão do humano se apresenta; poderemos explora-la melhor na medida que o comportamento se expande, tornando-se cada vez mais comum e acessível entre nós. 


Referências Bibliográficas

ECO, Humberto (2010). Historia de La Belleza. Ed. Debolsillo, 2010
   JUNG, C.G. (2013). Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. OC, 9/1. Petrópolis: Vozes.
BARTHES, Roland (1980). A Câmara Clara, RJ: Nova Fronteira.
BARCELOS, Gustavo (2017). Psique e Imagem, RJ: Vozes
KAST, Verena (2013). A Dinâmica dos Símbolos, RJ: Vozes.







    
            

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