sexta-feira, 23 de junho de 2017

Cultivar Alma - uma perspectiva sobre o processo transferencial na abordagem junguiana




Cultivar Alma -
uma perspectiva sobre o processo transferencial na abordagem junguiana

Por: Karen Geisel Domingues



Surpreendo-me ao constatar a variedade de interpretações dadas aos fenômenos sofridos por terapeutas e clientes durante um atendimento psicológico – encontros e desencontros entre falas e escutas, sentimentos que vão e sentimentos que voltam entre pessoas que ensaiam a compreensão do fenômeno do Ser. E nesse movimento de intenções verbais e não-verbais, emoções e crenças avolumam-se e, por vezes, dificultam a comunicação oral, tornando-a quase insustentável por toar como hybris, o desejo de alcançar o indizível à qualidade humana.
No Temenos, resolvi observar com mais cuidado o nascimento da vida anímica, a partir da relação Eu-Tu (BUBER in JACOBY, 1992), ou seja, os processos transferenciais que surgem a partir do momento em que duas almas se encontram com a intenção de fazer desabrochar a vida mais profunda da própria vida – a essência da criação, o Amor. Pois, quando a existência parece estar estagnada em suas possibilidades de expressão no sujeito, a capacidade de tocar a alma do cliente pelo terapeuta vem como arte genuína.




Para Stein (1978), a relação amorosa do terapeuta com sua própria alma trará possivelmente o tom para o encontro sagrado, onde duas pessoas tentam fazer brotar o amor e confiança, um dia perdidos para um deles. Edinger (1998) reafirma a premissa junguiana quando explica que, em certa medida, a consciência de um indivíduo que se encontra relacionado com o Si-mesmo parece ser contagiosa e tende a multiplicar-se em outras. De certa forma, o afeto desenvolvido na experiência individual anímica do terapeuta acaba por provocar o amor e interesse entre dois indivíduos no setting.
Em ondulações crescentes, Eros passa a provocar uma dis-tensão natural do desejo e amor antes contidos, e que agora se expandem a partir da vida interior enriquecida durante o processo terapêutico para a relação Eu-Tu maior: a expressão do sujeito e sua realização no mundo.
No belíssimo processo de fazer alma, é natural que se constelem complexidades múltiplas ao redor do resgate do Amor. Nesses momentos densos, o sujeito em análise por vezes apresenta a criança frustrada em seu íntimo: aquela que gostaria de engolir completamente o analista, ao fazer cenas e exigências infantis, então, o adulto-criança acaba, por vezes, compensando esse movimento ao mostrar-se muito correto, sabendo que se admitir suas exigências, o analista naturalmente revidará, algo que ele já experimentou com frequência na vida, quando depois de esconder seus sentimentos, a criança magoada retirou-se uma vez mais, amargamente frustrada (VON FRANZ, 1999, p. 88).
Então, como sustentar o Temenos onde a criança voraz possa surgir, confiar, amar e desenvolver-se plenamente servindo-se dos processos transferenciais? Afinal, o que se tem frente a frente no momento presente não são mais uma criança e um adulto, mas dois adultos que ensaiam uma relação humana genuína capaz de gerar espaços criativos para expressão da vida. Nesse momento de concepção de novas possibilidades, há cuidados necessários para reeducação desse indivíduo que necessita participar com todo seu ser. Agora, ele necessita representar em si seu pai e sua mãe que deverão entrar em conjunctio e preparar o nascimento para o novo ser: uma nova manifestação da vida capaz de representá-lo como expressão do Si-mesmo no mundo. Entretanto antes dele apresentar e sentir em si aspectos do masculino e feminino maduros suficientes para um casamento, o sujeito provavelmente sentirá necessidade de experimentá-los em seu terapeuta a fim de introjetar adequadamente experiências reparadoras de Lei e de Amor, ou seja, experiências associadas a Logos e Eros.

William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)


Jung (1999, p. 23) considera o processo de assimilação como sendo a interpenetração recíproca de conteúdos conscientes e inconscientes, análogos ao devorar da criança faminta, à atividade sexual do adulto e à introjeção, em níveis psicológicos. Para Jung, a assimilação nunca ocorre somente de um isto ou aquilo, mas sempre de um isto E aquilo, podendo surgir como primeiro movimento instintual a atividade antropofágica e voraz do Eu tentando devorar o outro, representado pelo terapeuta. Em verdade, o devorar-assimilar parece referir-se à profunda necessidade de fazer e alimentar a alma, àquilo que falta ao sujeito para completar-se psiquicamente.
Ingênuo é pensar que o processo ocorre de maneira neutra e suave sem intensos impulsos da libido que cobra realização imediata em níveis primitivos, ou seja, o prazer de um organismo fisiológico maduro para a atividade no mundo. Destarte, nos movimentos de introjeção e amadurecimento dos aspectos da personalidade, o processo de transferência surge na abordagem analítica como experiência de reparação de vivências pessoais incompletas que não preencheram adequadamente a experiência arquetípica primordial. Nesse tipo de relação transferencial-contratransferencial, com frequência, o conteúdo do inconsciente coletivo irrompe numa forma de pulsão instintiva, seja poder ou sexo. Em outras palavras, a irrupção da libido do inconsciente apresenta-se num nível relativamente baixo ou animal. Desta forma, os impulsos no sentido de algo que deve ser feito ou conhecido manifestam-se primeiramente na forma de reações físicas, se não puderem atingir diretamente a consciência (VON FRANZ, 1999). O terapeuta, consequentemente, apresenta-se como continente capaz de sustentar a expressão da vida instintiva primitiva para que esta possa ser expressa, simbolizada e desenvolver-se dentro de padrões saudáveis e estáveis para seu cliente.
Assim como uma mãe sustenta o filho em seus braços enquanto o alimenta e apresenta-o ao mundo, o terapeuta sustenta o início da vida que surge no indivíduo, auxiliando-o nos ensaios do engatinhar no mundo interior: dar nome às coisas desconhecidas, sonhar seus sonhos esquecidos, perceber seus desejos represados e amordaçados no porão da alma. Ele media a entrada do cliente em seu próprio mundo anímico, assim como, uma vez alguém lhe iniciou à vida exterior. Para Stein (1978), devido à natureza do receptáculo analítico e, a partir do genuíno interesse do terapeuta, a alma desprezada começa a vibrar e aventurar-se para fora de sua câmara escondida. Em suas primeiras manifestações, provoca calor e sentimento, que normalmente surgem dirigidos para o analista, que passa a ser sentido como alguém que possui e contem a substância que o sujeito precisa para se completar - o Amor, a essência necessária tanto para união interna como para união com o outro. Desta sorte, o terapeuta funciona como veículo e vínculo inicial entre o cliente e sua alma.
De certa maneira, para Stein (ibidem), em sua obra, Incesto e Amor Humano – a traição da alma na psicoterapia, a alma engana-se ao ver-se refletida no outro, em verdade o Eu e o Tu fundem-se num primeiro momento de indiscriminação, assim como a mãe e o bebê que se reconhecem um no outro. Os processos transferenciais são como um espelho, onde o sujeito enxerga-se no terapeuta e apaixona-se, em verdade por ele mesmo, já, em sua visão futura, mais profunda e abrangente sobre si próprio.



Tem-se, então, um trabalho a ser construído em via dupla. Se por um lado o cliente passa a vivenciar seu próprio ser a partir de projeções no terapeuta com posterior análise e síntese dos aspectos sombrios - considerado o desenvolvimento de seu relacionamento com seu mundo interior; por outro lado, as relações Eu-Tu também serão enriquecidas, pois a partir da profundidade desenvolvida consigo mesmo haverá, na mesma proporção, a profundidade em suas outras relações. Desta forma, prepara-se o caminho da multiplicatio, quando o terapeuta provoca em seu cliente a abrangência de cultivo de alma antes somente experiência de sua personalidade e encaminha o sujeito a confiar e aprofundar em suas relações para além do setting terapêutico.
A almejada conjunctio, união de pares de opostos, representa a realização do sujeito tendo agora em si: pai e mãe introjetados e maduros, relacionamento desenvolvido entre consciente e inconsciente e o princípio de Logos e Eros em harmonia, consequentemente, a realização do casamento sagrado e a concepção do ser que se produzirá a partir daí. Novas perspectivas de vida abrem-se ao analisando, logo, quem está em gestação é um novo ser, pronto para a idade de outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos (BARTHES, 2007). A este momento denomina-se Recriação.
Para Jung (1971/1999), o encontro analítico passa a ser um desafio, uma oportunidade de haver um futuro relacionamento - entrar em contato com a alma do mundo, representada pelo terapeuta como uma perspectiva mais abrangente de vida. Pode-se considerar igualmente como a criação de um sentido de profundo respeito e amor pelas possibilidades da existência e pela compreensão de finitude e limitação da consciência frente aos desígnios do Inconsciente.
Aprende-se, então, a reconhecer o não-saber ao observar-se os fenômenos da Vida e propor questões, e com a onipotência criativa das crianças, criar novos sentidos a antigas experiências, assim como, criar novas experiências através de antigos sentidos. No espaço vazio, antes, somente sentido como vazio de sentido e sofrimento da alma; agora, o sujeito avança para além das convenções e saberes instituídos, pois como Hillman afirma (1984, p.248), a lacuna do vazio não deve ser superada, preenchida ou completada. Ou antes, o vazio é a plenitude, de modo que esta lacuna se torne o local de reflexão, o local da consciência psíquica, e ofereça o espaço para portar e conter; é a própria psique.
A partir das relações transferenciais e de um Temenos sagrado à alma, aprende-se a fazer cessar a excessiva força da consciência e abrir espaço à relação com o não-saber, forma de conhecimento do Inconsciente. Recriar-se, na terapia, a abertura proposta pelo paradigma dos opostos complementares – o espelho não é mais somente o outro, o espelho agora ocorre no laço que existe entre o Eu, o Tu e o não-saber – a própria experiência da Vida. Então...
Seja Paciente
Quero lhe implorar para que seja paciente com tudo o que não está
resolvido em seu coração
e tente amar as perguntas como quartos trancados
e como livros escritos em língua estrangeira.
Não procure respostas que não podem ser dadas
porque não seria capaz de vivê-las.
E a questão é viver tudo.
Viva as perguntas agora.
Talvez assim, gradualmente, você sem perceber, viverá a resposta num dia
distante.
Rainer Maria Rilke



Bibliografia

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007.
EDINGER, Edward. Anatomia da Psique. O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 1998.
HILLMAN, James. O mito da análise. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1984. JACOBY, Mario. O encontro analítico. São Paulo: Cultrix, 1992.
JUNGhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Gustav_Jung, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Petrópolis: Vozes, 1971/1999. STEIN, Robert. Incesto e amor humano. A traição da alma na psicoterapia. São Paulo: Edições Símbolo, 1978.
VON FRANZ, Marie Louise. Alquimia. Introdução ao simbolismo e à psicologia. São Paulo: Cultrix, 1999.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

NOSSA SOMBRA PRESA AO POSTE

                                                 NOSSA SOMBRA PRESA AO POSTE


Por :Tiago Gozzer Viegas
tiagogv@gmail.com
Psicologia Clínica de Orientação Junguiana

Resumo
A sombra é um dos elementos constituintes da nossa psique inconsciente e diz muito sobre cada um de nós. Ela é uma parte de nós da qual não gostamos, que não aceitamos que faça parte da nossa estrutura egoica. Entretanto, é constructo essencial da nossa totalidade e precisa ser respeitada. Ocasionalmente eventos em nossa sociedade permitem que consigamos enxergar nossa sombra, projetando-a nos outros. Passamos a ver, nos outros, características ruins das quais não gostamos, mas que são nossas. Eventos como o caso do rapaz, suposto ladrão, que foi agredido e preso a um posto de luz por um cadeado de bicicleta, traz a tona não só a nossa sombra pessoal, mas a coletiva.

Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero. São Paulo, Rm, 7:19.

(Yvonne Bezerra de Mello/ Arquivo Pessoal)

 Introdução
    No início de fevereiro de 2014, um jovem negro, menor de idade, foi encontrado agredido, sentado no chão na praia de Botafogo, na zona nobre do Rio de Janeiro, completamente nu, e preso pelo pescoço por um cadeado de bicicleta a um poste de luz. O jovem diz ter sido perseguido e agredido por um grupo de três homens, que se intitulavam justiceiros. O rapaz era acusado de praticar alguns delitos na região e encontrava-se em situação de rua há cerca de dois anos.
Esse evento causou muita discussão em nossa sociedade à época do acontecimento. Várias pessoas se manifestaram a favor da ação dos ditos “justiceiros”, enquanto que outras recriminaram veementemente a ação.
Uma coisa que chamou muita a atenção foi a paixão, a veemência das posições adotadas em relação à situação. Quando algo semelhante acontece, quando reagimos de modo intenso a algo que nos enche de aversão ou admiração, talvez seja a nossa sombra se revelando (ZWEIG e ABRAMS, 1991). Comentários do tipo “Pra mim essa raça tem que ser exterminada com requintes de crueldade”, “Um povo que tem o estado do seu lado não tem porque fazer justiça com as próprias mãos. Não é o nosso caso”, “Se pudesse, arrancava a mão do filho da puta sim. Não vou ficar esperando justiça divina”, de um lado, e de outro “Repúdio absoluto e urgência de responder isso à altura”, “Não tem como justificar a privação da liberdade de nenhum ser humano !!”, “Estes caras tem muito mais a ver com razismo (sic) e sadismo que com a "proteção desinteresada" dos direitos da sociedade”, “Alguém que deseja punir um criminoso com tamanha violência e humilhação só pode ser um doente mental, sinceramente”.
Os comentários, tanto pró quanto contras, parecem conter grande teor de projeção da sombra individual de cada um. Contudo, antes de esmiuçar mais a questão, é importante clarificar esses conceitos envolvidos, tais como sombra e projeção.





Jung (OC, 9/1, p. 513) diz que a sombra personifica tudo o que o sujeito não reconhece em si e sempre o importuna, direta ou indiretamente. Ela é, segundo Stein, (2006) uma estrutura psíquica inconsciente que não pode ser controlada pelo ego, é o lado inconsciente das operações do ego e seria caracterizada pelos traços e qualidades incompatíveis com o ego consciente e a persona. São as partes da personalidade que normalmente pertenceriam ao ego se estivessem integradas, mas foram suprimidas.
A sombra possui características da natureza de uma pessoa que podem ser muito contrárias aos costumes e convenções morais da sociedade, mas ela não é totalmente imoral e incompatível com a nossa personalidade consciente (ZWEIG e ABRAMS, 1991).
    A sombra também pode ser descrita como a personificação de certos aspectos inconscientes da personalidade que poderiam ser acrescentados ao complexo do ego, mas que, por várias razões, não o são. A sombra, assim, é tudo aquilo que faz parte da pessoa, mas que ela desconhece (VON FRANZ, 1985).
    Vale destacar que a sombra nem sempre é negativa, ela pode ser positiva. Podemos carregar em nosso inconsciente materiais socialmente aceitos, bons padrões de comportamento, mas que podem ter sido, por algum motivo, recalcados. A sombra, por si só, deve ser vista de maneira positiva, pois ela é um portal de acesso a todas as experiências transpessoais mais profundas (WHITMONT apud ZWEIG e ABRAMS, 1991). Segundo Miller (apud ZWEIG e ABRAMS, 1991), parafraseando Jung, 90% da sombra é ouro puro.
    Mesmo considerando as características positivas de nossa sombra, é difícil para cada um de nós identificarmos essa parte da psique. Esses conteúdos foram para na sombra, não por acaso. Eles possuem uma razão para terem sido alijados do plano consciente. Assim, nossa sombra frequentemente se apresenta óbvia para os outro, mas continua desconhecida por nós (SANFORD, 1986), isso porque tememos o conhecimento da sombra (JUNG, OC 9/1).
Conhecer a sombra de maneira completa e verdadeira é impossível de ocorrer (HOPCKE, 2012), pois ela não é diretamente experimentada pelo ego, mas é projetada nos outros (STEIN, 2006). Assim, vale a pena descrever o mecanismo da projeção para um melhor entendimento dos processos relacionados com a sombra.



Projeção


A projeção é um mecanismo inconsciente que usamos sempre que é ativado um traço ou característica de nossa personalidade que não está relacionado com a consciência (MILLER apud ZWEIG e ABRAMS, 1991). Ou, em outras palavras, a projeção é um mecanismo psíquico que ocorre sempre que um aspecto vital de nossa personalidade que desconhecemos é ativado (SANFORD, 1986).
Os fatores psíquicos existentes dentro de nós são geralmente projetados. Quando algo é projetado, o vemos fora de nós, como se fizesse parte de outra pessoa e nada tivesse a ver conosco. A projeção é um mecanismo inconsciente. Quando aspectos individuais são projetados, geralmente não reconhecemos que eles fazem parte de nós, pois parecem estar fora de nós (SANFORD, 1986).
A projeção não é necessariamente negativa, como comumente costuma-se comentar, mas a projeção também pode ser positiva, pois podemos projetar características positivas nossas nos outros (MILLER apud ZWEIG e ABRAMS, 1991). Além disso, se não projetarmos, não conseguiremos estabelecer uma conexão com o mundo, tanto exterior quanto interior (BLY apud ZWEIG e ABRAMS, 1991).



Projeção da Sombra
A projeção da sombra acontece a todo momento, independente da vontade consciente. É um mecanismo natural de nossa psique. Em vez de reprimir ou negar a sombra, podemos projetá-la sobre os outros. Jung (OC, 9/1, p. 477) diz que a sombra espera por uma oportunidade favorável para reaparecer, como projeção no outro.
As projeções da sombra agem exacerbando características desse lado obscuro da nossa alma, “injetando uma espécie de veneno nas relações interpessoais por meio de uma denegação moralista e de percepções distorcidas” (HOPCKE, 2012 p. 96). Em geral, vemos a sombra indiretamente, nos traços e ações desagradáveis das outras pessoas, lá fora, onde é mais seguro observá-la, afinal, encontrar nossa sombra pode ser uma experiência assustadora (ZWEIG e ABRAMS, 1991).
O ego não possui sequer consciência de que projetamos uma sombra. A outra pessoa é quase sempre o monstro cruel, enquanto que nós nos sentimos inocentes cordeiros (STEIN, 2006).
É difícil, para todos nós, encararmos a nossa sombra de frente. É difícil admitirmos que possuímos um grande lado obscuro em nossa personalidade, sendo mais fácil projetá-lo nos outros. Jung dizia que o encontro consigo mesmo pertence às coisas desagradáveis que evitamos, enquanto pudermos projetar o negativo à nossa volta (JUNG, OC, 9/1, p. 44).
É importante destacar esse comportamento de projetar nossa sombra no outro, pois essa projeção embaça a visão que temos do outro (WHITMONT apud ZWEIG e ABRAMS, 1991; VON FRANZ, apud ZWEIG e ABRAMS, 1991). Assim, muitas das características que atribuímos aos outros, na verdade, pertencem a nós mesmos, especialmente aquelas características que mais nos chamam a atenção.
Dependemos do outro para que possamos nos conhecer. Se vivêssemos isoladamente, seria praticamente impossível perceber a própria sombra (VON FRANZ, 1985). Por isso o mecanismo de projeção é algo importante e até essencial para que possamos integrar toda a nossa psique.


Sombra Coletiva



    Assim como possuímos uma sombra individual, possuímos também uma sombra coletiva. A sombra coletiva funciona e possui as mesmas características da individual, mas aplicada a grupos de pessoas, populações. Von Franz (1985) diz que todas as civilizações possuem sua própria sombra.
A sombra pode ser projetada tanto individual, como coletivamente (WHITMONT apud ZWEIG e ABRAMS, 1991). Grupos projetam suas sombras coletivas em outros grupos. Toda minoria, todo grupo dissidente, carrega a projeção da sombra da maioria.
Assim, da mesma foram que do ponto de vista individual, do ponto de vista coletivo é importante que identifiquemos os aspectos que tanto nos chamam a atenção em outros grupos. Essas características, que em geral abominamos, quase sempre a possuímos em nível inconsciente.
Acontecimentos Sociais e a Sombra
Ainda em relação a essa sombra coletiva, Maffesoli (2004) diz que nossa sociedade atual foi altamente reprimida, especialmente após o advento do Iluminismo, onde a racionalidade e o cartesianismo foram incentivados. Os ritos, rituais, simbolismos, naturalismos foram sendo reprimidos. Verdades que são perenes foram transformadas em absolutas, enfraquecendo a reflexão tanto individual quanto coletiva. Esse comportamento social fez aumentar a sombra da coletividade.
As revoltas e rebeliões que surgem ocasionalmente nada mais seriam do que tentativas da sombra coletiva ser ouvida, ser considerada. Maffesoli (2004, p. 15) destaca que a inteireza implica o mal, ou seja, uma coisa sempre possui características positivas e negativas. Há uma ligação orgânica entre o bem e o mal. Uma sociedade policultural sabe integrar o mal como um dos seus diversos elementos. Quando ele é respeitado e vivido, esse mal passa a se tornar inofensivo. Podemos traduzir esse mal, na linguagem de Jung, como sendo a sombra. Então, quando a sombra não é adequadamente considerada, ela passa a ser uma ameaça, seja para o indivíduo, seja para o coletivo.
É preciso reconhecer o mal, para que ele não sufoque o corpo social. O entendimento dos fenômenos sociais exige uma mudança de perspectiva, ou seja, deixar de criticar, de explicar e passar a compreender, a admitir (MAFFESOLI, 2004, p. 19). O mal negado ressurge de forma descontrolada.




Nossa Sombra no Poste


    Após essas considerações teóricas, fica mais fácil entender o título do presente artigo. O caso descrito na introdução deste trabalho traz uma riqueza de exemplos de projeções da sombra, tanto individuais quanto coletivas.
    A emotividade, as paixões despertadas pelo acontecimento são um claro indício de manifestação da sombra. A intransigência é território da sombra (MILLER apud ZWEIG e ABRAMS, 1991). No caso em questão, pode-se ver intransigência em todos os lados da história. A primeira, e mais óbvia, é a ação dos chamados justiceiros ao baterem no rapaz, despirem-no e prendê-lo ao poste, de maneira a humilhá-lo. Whitmont (apud ZWEIG e ABRAMS, 1991) diz que “a sombra é o impulso arquetípico de buscar o bode expiatório, de buscar alguém para censurar e atacar, a fim de nos vingarmos e nos justificarmos” (grifo meu).
    O menino que foi amarrado ao poste pelos chamados justiceiros representa, de certa maneira, a sombra da nossa sociedade. Ele é uma pessoa que já teve passagens pela polícia, que foi acusado de praticar alguns roubos, que vive marginalizado, em situação de rua. Essas características não são bem aceitas por nossa sociedade, que preza pela ordem, pelos costumes tradicionais, pela legalidade, que não compreende o diferente, o dito errado.
    Jung (OC 9/1, p. 478) destaca que a sombra pode ser personificada, até encarnada, quando pessoas se reúnem em grupo. Foi isso que aconteceu, o rapaz amarrado ao poste foi a encarnação da sombra do grupo. Como visto anteriormente, é muito difícil lidarmos com nossa própria sombra, não sabemos como fazê-lo. É algo incômodo confrontá-la.
    Nota-se também a sombra coletiva ao se analisar os comentários das pessoas às matérias jornalísticas feitas pelos veículos de comunicação sobre o caso. Na ocasião a pessoa que encontrou esse menino preso ao poste criticou duramente os autores da ação, expondo a todas as pessoas o que tinha acontecido. Inúmeras pessoas criticaram de maneira muito intensa a defesa que essa pessoa fez do menino, achando um absurdo alguém defender um suposto bandido.
    Destaca-se também que a sombra não se manifestou apenas naquelas pessoas que praticaram a ação de prender o menino ao poste e nas que defenderam veementemente essa ação. Mas também naquelas pessoas que criticaram veementemente a própria ação. Provavelmente, essas pessoas carregam em seu lado sombrio essa capacidade (quem sabe um desejo), de fazer mal, de bater, de humilhar outras pessoas, especialmente as minorias.


Superação do Dilema


Vale a pena destacar que não estou querendo fazer nenhum tipo de julgamento, em termos de certo ou errado, sobre o acontecido. O objetivo é analisar a situação sob a ótica analítica, especialmente no tocante à manifestação da sombra, tanto individual quanto coletiva.
O enfrentamento da sombra é aspecto essencial para o processo de individuação. Devemos superar a díade de comportamentos que costumamos ter em relação à sombra: rechaçá-la ou vivê-la. Devemos integrar aspectos de nossa sombra à nossa vida (VON FRANZ, 1985). Devemos enfrentar e aceitar características que não nos são agradáveis. Stein (2006) diz que se uma pessoa rechaça a sombra a vida é correta, mas terrivelmente incompleta.
A sombra faz parte da nossa personalidade, é parte importante de nossa estrutura psíquica. Devemos buscar compreender essa nossa faceta. Não devemos reprimi-la totalmente, nem tampouco vivê-la completamente. Viver os impulsos da sombra não é uma solução, pois podemos ser facilmente possuídos por ela (SANFORD apud ZWEIG e ABRAMS, 1991).
O caminho para a superação dessa dificuldade é a aceitação. Maffesoli (2004, p. 20) afirma que “aceitando o mal, encontra-se a alegria de viver”. O próprio Jung relata que não devemos fugir da sombra, mas passar através dela (JUNG apud MAFFESOLI, 2004, p. 54). Contudo, Jung (O/C, 9/2, p. 20) afirma que a integração da sombra nunca será completa, pois ela possui traços que escapam de qualquer tipo de influência.
Zweig e Abrams (1991) fazem uma bela consideração, que vale a pena ser transcrita: “se realmente quisermos enfrentar o desafio do mal no mundo, cada um de nós precisa assumir sua responsabilidade em termos individuais. Precisamos admitir e aceitar como parte de nós mesmos o mal e a imundice que pertencem a cada um de nós, por sermos humanos e desenvolvermos um ego” (p. 191, grifo meu). Uma pessoa que tem consciência da sua inferioridade tem mais condições de corrigi-la (JUNG, O/C 11/1, p. 97).
Este artigo foi iniciado com uma frase do apóstolo Paulo, em que ele diz que acaba fazendo o mal que ele não quer. Ele fala, claramente, da influência da sombra em nossas vidas. Ela, por vezes, domina nossas ações. Contudo, para lidarmos bem com a nossa sombra, também devemos lembrar da famosa frase dita por Jesus em que ele fale que atire a primeira pedra quem nunca pecou.
Quem não traz aspectos obscuros, feios, vergonhosos em sua sombra? Temos que ter cuidado ao lidar com as projeções que fazemos dela nos outros. Certamente o que nos incomoda muito nos outros, trazemos em nós mesmos de maneira inconsciente.
Em geral, culpamos nossos adversários pelas nossas faltas que não admitimos, assim, enxergamos defeitos nos outros, criticamos nossos semelhantes, querendo educá-los e corrigi-los (JUNG, O/C 8/2 p.222). Na verdade ao olharmos para o outro, devemos ver não o outro, mas a nós mesmos.

Referências

BLY, R. Um pequeno livro sobre a sombra humana. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
HOPCKE, R. H. Guia para a Obra Completa de C.G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, C.G. O problema do mal no nosso tempo. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
_________. Psicologia do inconsciente (OC 7/1). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
_________. A natureza da psique (OC 8/2). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
_________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (OC 9/1). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
_________. Aion – estudo do simbolismo do si-mesmo (OC 9/2). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
MAFFESOLI, M. A parte do diabo. Rio de Janeiro: Record, 2004.
MAY, R. Os perigos da inocência. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
MILLER, D. P. O que a sombra sabe. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
MILLER, W. A sua sombra dourada. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
PECK, M.S. A cura do mal humano. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
SANFORD, J. A. Parceiros invisíveis: o masculino e o feminino dentro década um de nós. São Paulo: Paulinas, 1986.
___________. Dr. Jekyll e Mr. Hyde. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma: uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2006.
VON FRANZ, M.L. A sombra e o mal nos contos de fadas. São Paulo: Paulus, 1985.
___________. A percepção da sombra nos sonhos. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
WHITMONT, E. C. A busca simbólica. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.



sexta-feira, 9 de junho de 2017

Pi e a Jornada para a Individuação (Contém Spoilers)


                                                     Pi e a Jornada para a Individuação






Trailer do Filme


Tiago Gozzer Viegas
tiagogv@gmail.com
Psicologia Clínica de Orientação Junguiana




Resumo
O artigo lança um olhar analítico sobre o filme “A Vida de Pi”, que conta a história de um rapaz que sofre um naufrágio de navio com toda a família, mas só ele consegue se salvar. Pi, entretanto, não foi o único a sobreviver, um tigre, Richard Parker, que estava no navio e pertencia ao zoológico do pai de Pi também sobrevive e os dois tem que dividir o mesmo bote até encontrarem terra firme. O filme faz uma grande analogia a partes do processo de individuação, especialmente no que se refere ao encontro com nossa sombra, ao contato com a anima e ao respeito pelo Self.





Introdução
 O presente artigo tem como foco o filme A Vida de Pi, lançado em 2012, dirigido pelo cineasta taiwanês Ang Lee. O filme nos mostra, de uma maneira muito bonita, poética e impactante, uma síntese de parte do que Jung denominou de processo de individuação, bem como apresenta conceitos de anima, de sombra e de Self. A obra é uma analogia à jornada humana para a individuação.
Segundo Jung, individuação é um processo que gera um individuum psicológico, ou seja, uma unidade indivisível, um todo (JUNG, OC 9/1, pg. 274). É um percurso de desenvolvimento produzido pelo conflito de duas realidades anímicas fundamentais, o consciente e o inconsciente. Quando um é reprimido e prejudicado pelo outro, isso não resulta uma totalidade (JUNG, OC 9/1, pg. 288), assim a individuação é um processo que resulta da harmonização de aspectos conscientes e inconscientes da psique.
O mecanismo psicológico por meio do qual a individuação ocorre é a compensação. A relação entre consciência e inconsciência é compensatória e tenta introduzir equilíbrio no sistema psíquico (STEIN, 2006, pg. 157).
Segundo Hopcke (2012, pgs. 75 e 76), individuação é o processo de se chegar a um equilíbrio psíquico entre o consciente e o inconsciente, quando o ego e o Self apresentam relacionamento contínuo, consolidando um senso de individualidade única, tornando a pessoa capaz de viver de modo criativo, simbólico e individual. É um processo de tornar-se indivisível, tornar-se um consigo mesmo.
De maneira geral, a individuação é um processo de uma vida, e boa parte das pessoas não conseguem alcançar esse desenvolvimento. É um processo difícil e puramente pessoal. Contudo, como a psicologia analítica é profundamente baseada em símbolos e imagens, a existência de algo que concretize parte desse processo é de grande importância a todos, e o filme em questão cumpre esse papel.
Assim, na sessão seguinte, será apresentada a história do filme e, nas posteriores, serão traçadas as analogias de aspectos cinematográficos com a psicologia analítica e o tão almejado processo de individuação.
 História do filme
“A vida de Pi” inicia-se com um homem adulto conversando com um repórter. Esse homem, Piscine Molitor Patel, é o personagem principal do filme. O repórter o procurou por indicação de um conhecido comum, que disse que Pi (apelido de Piscine) tinha uma história para contar que o faria acreditar em Deus, mas que caberia ao ouvinte escolher no quê acreditar. O protagonista começa então a narrar sua história.
Pi era um menino que vivia com seu pai, sua mãe e seu irmão em Pochicherry, Índia. Sua família possuía um zoológico, que era uma das principais atrações da cidade.
Desde criança Pi buscou a religião, e esse aspecto é central no filme. Ele se dizia hindu-cristão-mulçumano. Pi encontrou em cada uma dessas religiões diferentes respostas a diferentes dúvidas que tinha. Encontrou a fé no hinduísmo, o amor no cristianismo, e a tranquilidade no islamismo. Pi busca sempre entender Deus e seus planos para sua vida.
Na época em que Pi já era um jovem adulto, devido a problemas sociais, políticos e financeiros, seu pai resolveu se mudar com a família para o Canadá, levando os principais animais do zoológico com eles. Nessa época, Pi havia conhecido uma garota chamada Anandi, pela qual se apaixonara. Antes de se mudar, coisa que ele não queria fazer, Pi não consegue se despedir da namorada.
Toda a mudança foi feita de navio, com todos os cuidados necessários aos animais. No meio da viagem ocorre uma grande tempestade que acaba virando a embarcação. Pi consegue se salvar subindo em um bote, em que já estavam uma zebra com a perna quebrada e uma hiena. Após a tempestade, um orangotango fêmea aparece boiando em cima de um cacho de bananas e sobe no mesmo bote.
Pi se vê, então, em um pequeno bote, em que metade dele está coberto por uma lona e a outra metade está exposta, onde se encontram a zebra ferida, a hiena e a orangotango. Com o tempo, a tensão e a fome no bote aumentam e a hiena ataca a zebra, matando-a. Como os animais eram muito queridos a Pi, ele sofre com isso e tenta brigar com a hiena, sem sucesso.
Posteriormente a hiena atacou a orangotango, que era um animal muito importante para Pi. Ao ver a primata ser atacada, Pi tenta desesperadamente salvá-la, mas não consegue e fica extremamente raivoso. Nesse momento, um tigre salta de dentro da parte coberta do bote, avança sobre a hiena e a mata. Isso assusta muito Pi fazendo com que ele busque se refugiar fora do bote.
O tigre é a segunda personagem principal do filme. Seu contato com Pi inicia-se ainda quando ele era criança e estavam no zoológico. Quando um tigre, chamado Richard Parker, chega ao zoológico, Pi fica fascinado por ele. Certo dia, ele tenta alimentar o tigre sozinho, com apenas uma grade os separando. Quando o tigre estava se aproximando, o pai de Pi presencia a cena e grita, afastando o animal. O pai então o repreende veementemente, diz que o tigre é um animal muito perigoso e que ele deve sempre ficar afastado dele. Pi diz que viu nos olhos do tigre a alma do animal, mas o pai diz ao filho que o animal é só um reflexo do nosso olhar, ou seja, que vemos nele o que carregamos dentro de nós.
Inicia-se, então, o longo relacionamento entre Pi e o Richard Parker. Os dois passam muito tempo sozinhos no bote, se conhecendo e, posteriormente, aprendendo a conviver. É uma relação intensa, onde eles aprendem que, apesar do perigo, ambos precisam um do outro e precisam aprender a conviver para que possam sobreviver.
A certa altura do filme, quando os dois estavam prestes a desfalecer, encontram uma ilha, na qual conseguem se alimentar e se revigorar. Mas essa ilha é carnívora e, à noite, mata quem permanece no seu solo. Percebendo isso a tempo, ambos conseguem partir salvos e a tempo.
Posteriormente, quando todas as reservas já tinham acabado, eles encontram terra firme, chegam ao litoral do México. Nesse instante ambos saem do bote e o tigre entra na mata, sem se despedir de Pi, o que o deixa muito triste.
No final, Pi conta essa história para as pessoas da companhia de seguros do navio que afundou. Eles não acreditam no que ele diz e pedem para ele contar a verdade. Pi conta, então uma história na qual ele diz que após o naufrágio do navio, ele consegue subir no bote, e nele estavam o cozinheiro do navio, que era um homem cruel e insensível, um marinheiro budista que estava com sua perna quebrada e a mãe de Pi. O protagonista pede então para os homens escolherem qual história eles preferiam.
A partir dessa outra versão da história, entende-se que a hiena era a representação simbólica do cozinheiro, a zebra a representação do marinheiro, e a orangotango, de sua própria mãe. Então, fazendo a analogia com a primeira história contada, o cozinheiro matou o marinheiro ferido e depois matou a mãe de Pi. O protagonista teve então um acesso de fúria e matou o cozinheiro. O tigre representava, portanto e simbolicamente, o próprio Pi, mais especificamente aspectos inconscientes e primitivos dele, algo como sua sombra.
As cenas finais do filme retomam Pi adulto com seus filhos e sua esposa, Anandi. Ela era sua antiga namorada e se reencontraram após o seu salvamento.

Pi



Elementos iniciais
Antes de nos determos nos elementos principais trazidos pelo filme, um primeiro aspecto que chama a atenção é o nome do personagem principal. O filme mostra a vida de Piscine Molitor Patel. É retratado, de uma maneira muito clara, o sofrimento que o protagonista passou em sua infância devido ao seu nome e como ele procurou superar isso, transformando em algo positivo.
Piscine passou a falar a todos que seu apelido era Pi, e para tanto decorou inúmeras casas decimais do número matemático Pi, que é a razão entre o perímetro de um círculo e seu o diâmetro. Isso foi um grande evento na escola. Ele foi bem sucedido nessa empreitada.
Mas, simbolicamente, o apelido do personagem já nos dá dicas simbólicas do contexto em que se desenrola o filme. Pi é um número infinito e irracional, de acordo com a matemática. A Vida de Pi, como uma analogia ao processo de individuação, nos indica que esse processo é algo permanente na vida humana, e Jung nos diz que todos carregamos o impulso para a individuação, e é algo que não pertence exclusivamente ao campo do racional, mas está intimamente relacionado com a nossa inconsciência..
O apelido da personagem principal já nos indica que o filme diz respeito a processos que ocorrem com todos os indivíduos, não é personificado, nem tampouco consciente. Apesar de Jung não ter dito que o processo de individuação é algo infinito, como o número Pi, ele diz que o processo pode durar uma vida para acontecer, e que nem todas as pessoas conseguem atingi-lo. Segundo Stein (2006, pg. 155), a plena expressão e manifestação da personalidade (aspecto intrínseco à individuação) leva uma vida inteira para desenrolar-se.
O encontro com a sombra


A maior parte do filme é dedicada a mostrar Pi tentando conviver com o tigre no bote. Essa é a temática principal do filme e nos leva a pensar como um cenário aparentemente limitado (um bote, um homem, um tigre e o oceano) consegue prender a atenção dos espectadores durante mais de uma hora. Uma possível resposta para isso é a de que esse cenário envolve aspectos arquetípicos, o que faz sentir-nos parte do filme. É claro que a fotografia do filme é algo belíssimo, o que contribui em parte para prender nossa atenção.
Richard Parker, o tigre, aparece no bote em um momento de extrema fúria de Pi. O cozinheiro estava atacando sua mãe. Nessa hora em que a hiena ataca a orangotango, o tigre sai da parte coberta do bote e mata a hiena.
O bote representa tanto aspectos conscientes de Pi (parte descoberta) quanto aspectos inconscientes (parte coberta pela lona). O tigre sai da parte coberta e avança para a descoberta. O tigre sai da inconsciência para a consciência.
Nesse momento extremo de sua vida, Pi traz à tona aspectos presentes em sua sombra. “Ele trouxe o diabo para mim” disse Pi sobre o cozinheiro. O tigre representa parte da sombra de Pi, que naquele momento mostra-se ameaçadora, letal, perigosa.
Ao mesmo tempo em que a manifestação da sombra traz certa justiça ao bote (matando um elemento externo nocivo e detestável), ela assusta muito seu detentor. O filme centra-se, portanto, no conflito ego-sombra, em direção ao processo de individuação.
Vale a pena, nesse momento, conceituar a sombra, que, segundo Jung (OC, 9/1, pg. 513), personifica tudo o que o sujeito não reconhece em si e sempre o importuna, direta ou indiretamente. Ela é, segundo Stein, (2006, pg. 100) uma estrutura psíquica inconsciente que não pode ser controlada pelo ego, é o lado inconsciente das operações do ego e seria caracterizada pelos traços e qualidades incompatíveis com o ego consciente e a persona. São as partes da personalidade que normalmente pertenceriam ao ego se estivessem integradas, mas foram suprimidas.
Retomando o filme, Pi estava em um bote no meio do oceano. O oceano é um símbolo costumeiramente associado ao inconsciente. O próprio Jung disse que se estivéssemos à noite, em um pequeno barco no meio do oceano, segurando uma vela acessa, nosso consciente seria representado pela área que a vela consegue iluminar no barco, e nosso inconsciente seria todo o resto, incluindo o oceano.
Outra associação comum de se encontrar é a água como símbolo de nossa essência emocional. Portanto, em um ambiente em que imperam a inconsciência e as emoções, simbolicamente, surge nossa sombra, ou o tigre do filme.
Quando Richard Parker aparece no bote, Pi se joga no mar. Ele vê que não é possível a convivência de ambos em um mesmo bote. Sombra e ego são antagônicos, a princípio. Pi, então, utilizando partes do bote principal, constrói uma boia para ele e a amarra ao bote, assim o ego consegue sobreviver sem enfrentar o tigre, e sem se entregar ao inconsciente oceânico.
Entretanto, o Self (ou Deus, ou forças a natureza) faz com que o ego comece a se aproximar da sombra. Esse aspecto é parte essencial do processo de individuação. A sombra nunca será totalmente conhecida e integrada ao ego, mas ambos precisam conviver harmoniosamente para a saudável sobrevivência psíquica do indivíduo.
Uma noite, quando Pi estava em sua boia, uma enorme baleia (uma força da natureza) surge do fundo do oceano, dá um pulo para fora da água e cai em cima da corda de ligação da boia com o bote, destruindo a boia de Pi.
Piscine consegue reconstruir algo flutuante para ele ficar em cima, mas ele sabe que é algo provisório e que ele terá que ir ao bote principal, mais cedo ou mais tarde. Os suprimentos do bote acabam e ambos passam fome. O tigre vê alguns peixes na água e salta para tentar caçá-los, mas não consegue. Tudo o que vê é a boia de Pi, então começa a nadar em direção a ele. Pi se desespera e começa a remar para chegar ao bote.
Pi sobe no bote e o tigre fica na água, agarrado à embarcação, mas sem conseguir subir sozinho. Nesse momento Pi vê o tigre fragilizado e impotente, e tem o ímpeto de matá-lo, mas da mesma maneira que ocorreu quando ele era criança no zoológico, ele olha nos olhos do tigre e vê um amigo, não um inimigo. Pi se vê nos olhos do tigre. O ego percebe que a sombra não é seu adversário. Pi percebe que ele não pode matar o tigre, pois o ego não sobrevive sem a sombra. São dois lados da mesma moeda. Ele então auxilia o tigre a retornar ao bote, e volta para sua boia.
O rapaz, contudo, entende que precisa aprender a lidar com o tigre para que ele também possa sobreviver. Pi começa a manipular o bote, deixando-o paralelo às ondas, assim o balanço é maior e o tigre fica mareado. Ele começa a entender que o ego precisa se fortalecer, em detrimento da sombra, para que ambos possam coexistir.
Pi consegue, então subir no barco enquanto Richard Parker está muito enjoado, e tenta marcar seu território. Busca mostrar ao tigre que no bote tem que caber os dois. Mas ele tenta fazer isso, a princípio, na força. Ele urina no bote e grita para o tigre, que ruge e urina em Pi.
Piscine, então, aprendeu que não conseguiria entrar em harmonia com o tigre usando a força. O ego não deve subjugar a sombra. Pi aprende, aos poucos, a alimentar o tigre para que este não o visse como uma fonte de alimento. Ele aprende a pescar e começa a dividir o alimento com o tigre, fazendo com que este respeite a presença dele no bote e vice-versa. Ego e sombra começam uma convivência respeitosa.
Pi e Richard Parker, contudo, com o tempo, foram ficando desnutridos, exaustos, quase moribundos. Nesse momento, que ocorre após uma grande tempestade que abalou enormemente ambos, Pi finalmente toca o tigre. Ele coloca a cabeça de Richard Parker no colo e pede desculpas. Nesse momento ele faz as pazes com Deus. Logo em seguida eles encontram uma ilha.
Após os eventos que ocorreram na ilha (abordados na próxima sessão), ambos retornam ao bote e depois de ficar muito tempo à deriva, ficando novamente quase moribundos, eles chegam a terra firme. Eles descem da embarcação e Richard Parker, ainda cambaleando, entra na floresta em frente sem se despedir de Pi, sem ao menos olhar para trás.
Quando Pi estava saindo de mudança com a família para o Canadá ele não se despediu de Anandi, sua namorada. Ele não fez isso porque queria voltar a encontrá-la, não queria que a história deles tivesse um desfecho.
Quando o tigre, depois de tudo que eles passaram juntos, vai embora sem ao menos olhar para trás, sem se despedir, Pi disse que aquilo foi o que mais doeu nele. Achou que o tigre não demonstrou consideração pelo que vivenciaram. Contudo, como o tigre faz parte de Pi, como o tigre é sua sombra, é impossível que ela se despeça do ego, isso porque ela nunca irá embora verdadeiramente.
A sombra nunca será integrada integralmente. A sombra é um constructo do inconsciente. Ao entrar na floresta, simbolicamente, a sombra “retornou” ao inconsciente. Partes dela foram integradas à consciência, auxiliando a jornada para a individuação, mas parte dela sempre será inconsciente e sempre estará presente. Por isso, e por mais que tenha doído em Pi, o tigre não poderia ter se despedido. Assim como Pi queria se reencontrar com Anandi após a viagem e não se despediu dela, o ego vai sempre reencontrar a sombra, por isso não pode se despedir dele.
Pi diz no filme que se não fosse Richard Parker, ele teria morrido. Da mesma maneira, nossa sombra possui grande carga de energia psíquica necessária para o adequado desenvolvimento de nossas vidas. Nossa sombra possui importância vital em nossa estrutura psíquica. A sombra, por si só, deve ser vista de maneira positiva, pois ela é um portal de acesso a todas as experiências transpessoais mais profundas (WHITMONT apud ZWEIG e ABRAMS, 1991). Segundo Miller (apud ZWEIG e ABRAMS, 1991), parafraseando Jung, 90% da sombra é ouro puro.

 A anima salvadora

Aspecto muito importante no filme é o surgimento de uma ilha em um momento em que Pi e o tigre já haviam perdido as esperanças de se salvarem. Ambos estavam extenuados, desiludidos, quando o bote chega a uma ilha no meio do oceano.
Antes de se falar da ilha propriamente dita, é importante descrever um acontecimento da noite anterior. Nessa noite de muita calmaria, após uma grande tempestade, Pi e o tigre colocam as cabeças para fora do bote e começam a olhar para a água. Eles olham para baixo, para o fundo do mar. Nesse momento, sua visão se aprofunda e acontece uma grande sequencia de imagens. Esse momento representa, simbolicamente, um mergulho de Pi em seu inconsciente. Ele inicia uma viagem nas profundezas do oceano, ou da sua inconsciência, como se o Self, grande maestro de nossa estrutura psíquica, quisesse mostrar algo ao rapaz.
Quando olham para o mar, percebem a sua grandeza e a profundidade. Veem uma variedade de animais estranhos, mas também fascinantes. No final dessa visão ele vislumbra a silhueta de uma mulher hindu, sua namorada, Anandi. Seu olhar, então, se volta para o barco e ele percebe que tudo aquilo está, na verdade, dentro dele.
Nesse momento ele entra em contato com sua anima. A anima é um elemento do inconsciente que, dentre outras funções, fornece vitalidade e força ao ego. É uma força vital básica (STEIN, 2006, pg. 117). Não foi por acaso que em um dos momentos de maior desesperança e sofrimento enfrentado por Pi, ele entra em contato com sua anima. O Self parece ser o grande regente desse encontro.
Anima significa o componente feminino em uma personalidade masculina (SANFORD, 1986, pg. 12). Ela representa um nível de inconsciente mais profundo que a sombra (STEIN, 2006, pg. 116), e isso fica bem claro no filme quando a visão de Pi se aprofunda no oceano e vai encontrar Anandi lá no fundo.
Após esse primeiro contato com a anima, no dia seguinte eles encontram a ilha. O elemento feminino é visto, em muitas ocasiões, como elemento redentor (VON FRANZ, 1984, pg. 43). Aspecto interessante é que a ilha possui um formato antropomórfico, se assemelha a uma silhueta de mulher. Nesse local eles encontram comida e água. A ilha fornece nutrição e conforto aos dois. Essas são características arquetípicas femininas, o que nos indica que a ilha é outro simbolismo da anima de Pi. Segundo Von Franz (1984, pg. 50), o elemento feminino se acha mais próximo da natureza, atuando como fator de salvação. Em um primeiro momento, a ilha os acolhe e os protege.
Entretanto, a ilha também possui o lado negativo do arquétipo da grande mãe, ela é devoradora. O elemento feminino está muito próximo do sombrio, do maléfico (VON FRANZ, 1984, pg. 43). Eles aprendem que à noite suas águas inicialmente potáveis, por algum processo químico, transformam-se em ácido. Enquanto está em cima de uma árvore, se protegendo dessa ameaça, Pi encontra uma flor, que se assemelha muito a uma flor de lótus. Dentro da flor ele encontra um dente humano. Nesse momento ele entende que não pode permanecer na ilha. Ele não pode viver na anima. Ele deve aproveitar os aspectos positivos da anima para se fortalecer e continuar a sua jornada.
Essa flor no formato de lótus parece estar relacionada com uma passagem inicial do filme. Quando Pi conhece Anandi, ele estava tocando um instrumento musical em uma aula de dança em que estavam várias mulheres, e ela estava presente. Ela fazia uma dança muito bonita, uma dança que parecia contar uma história. Após a aula, Pi conversa com Anandi e pergunta o que significa determinado gesto que ela fez com as mãos. Ela explica que aquilo era uma flor de lótus nascendo no meio da floresta. Então Pi questiona o que uma flor de lótus faria em uma floresta, tendo em vista que ela costuma nascer em terrenos pantanosos. Ele fica sem resposta.
Essa cena na ilha, em que ele encontra um dente humano dentro de uma espécie de flor de lótus, encontrada em uma árvore, parece responder ao questionamento inicial do protagonista. A flor de lótus é outro elemento feminino, relacionado à anima. Após encontrar essa flor que ele viu o quanto a ilha podia ser perigosa, ele tomou consciência desse aspecto letal, e entendeu que precisava continuar sua viagem.
Deus e o Self

  

Deus e a religiosidade possuem lugar importante no filme. No começo da narrativa de Pi, ele diz ao jornalista que vai contar uma história que o fará acreditar em Deus. Na psicologia analítica, o arquétipo do Self é, em muitas ocasiões, comparado a Deus, nosso Deus interior. A vivência do Self pode ser sentida psicologicamente como o “Deus dentro de nós”
A psicologia analítica apresenta o conceito de Self, ou Si-mesmo, como o arquétipo da totalidade, o centro regulador da psique, encarregado de guiar o processo de individuação. Segundo Stein (2006, pg. 158), a força impulsora do processo de individuação é o Si-mesmo.
O Si-mesmo é transcendente, ou seja, não é definido pelo domínio psíquico, nem está contido nele, situa-se além dele e o define. Ele é mais do que a subjetividade da pessoa, formando a base para o que no indivíduo existe de comum com o mundo (STEIN, 2006, pg. 137). Assim, percebe-se o quanto esse conceito acaba sendo, por vezes, comparado ao conceito de Deus. 
O Self, assim como algumas concepções que se possui de Deus, rege vários aspectos de nossa vida. É um saber superior, maior que nossa consciência. O Self direciona nossas vidas. Nesse sentido, simbolicamente, é possível traçar uma analogia do Self com Deus. Assim, dada a relação central que Pi possui com Deus e as religiões, o filme nos mostra que o Self é o eixo central de nossas vidas.
Pi sempre foi interessado por assuntos religiosos. Ele possuía um pai muito racionalista e cientificista, que dizia que a religião representava a escuridão. O pai ensina aos filhos para não aceitarem tudo cegamente, que seria melhor seguir algo com o qual não concorda, do que aceitar as coisas sem fazer um julgamento de valor.
Mas Pi possuía essa curiosidade e necessidade íntima de buscar algo fora de si, algo superior. Ele era hindu, devido à influencia da mãe. No hinduísmo ele diz ter encontrado a fé. Ele também se dizia católico, devido à influência de um padre que conheceu e serviu de tutor a alguns dos seus questionamentos. No cristianismo ele diz ter encontrado o amor. Posteriormente, Pi também adere ao islamismo, por curiosidade. Como mulçumano, ele diz ter encontrado a tranquilidade. Assim, ele se tornou um hindu-cristão-mulçumano, e conseguiu apaziguar várias inquietações que carregava dentro de si. Pi aprendeu que a fé era uma coisa viva, uma casa cheia de quartos.
Quando ainda estava no navio, na noite do naufrágio, Pi saiu de seu quarto e foi ao convés, pois estava havendo uma tempestade e ele queria ver o que estava acontecendo. Nesse convés, ele fica tomando chuva e começa a desafiar Deus para que ele mandasse mais chuva, que aquilo ali não era nada. Então o navio não resiste e começa a afundar. Como Pi estava no convés, desafiando a tempestade, fora de suas acomodações, ele conseguiu sair do navio e se salvar.
Após o naufrágio do navio, Pi começa uma conversa mais frequente com Deus. Às vezes ele pedia proteção, outras vezes agradecia, em outras ficava irado e brigava com Ele. Inicialmente ele sente culpa, tanto por ter desafiado Deus, quanto pelo fato de não ter conseguido salvar sua família. Depois esse contato passa a ser mais desesperado, suplicando que Deus o ajudasse. Ele busca entender o que Deus quer com ele.
No dia anterior ao encontro com a ilha, acontece outra grande tempestade no oceano. Nesse momento, Pi e o tigre já estavam no limite de seus forças. Quando a tempestade chega, Pi se amarra no barco e desafia a tempestade, desafiando novamente Deus. Ele grita muito, pede para a tempestade vir mais forte. É um comportamento de desespero, de quem acha que não tem mais nada a perder, mas ao mesmo tempo, se entregando à vontade superior.
O bote, que inicialmente estava coberto por uma lona, é descoberto por Pi. Nesse momento ele e o tigre ficam sem proteção nenhuma, e a chuva castiga bastante os dois. Contudo, Pi vê que Richard Parker está sofrendo, que aquilo é muito para ele. Então ele percebe que ele não está sofrendo sozinho. O ego não está sofrendo sozinho as adversidades que o Self colocou no seu caminho, sua sombra e tudo mais também são influenciados pelo Si-mesmo.
Pi começa a cobrir novamente o bote, protegendo o tigre. Ele pede desculpas ao animal, a água toma conta de quase tudo. Nesse momento ele se entrega e o inconsciente toma conta, ele desmaia e dorme. No dia seguinte ele tem o contato com a anima e, depois, encontra a ilha.
Esses eventos mostram o ego se submetendo ao Self, após confrontá-lo. O Self é uma força muito maior que o ego e a nossa personalidade, ele é maior que a individualidade. Contudo, é nosso guia no processo da individuação, está sempre ao nosso lado, e após o ego ter se colocado no seu lugar e entendido o valor do Self, este último o auxilia, fazendo-o entrar em contato com sua anima revigoradora.


Podemos fazer paralelos claros do filme com nossas vidas. Assim como Pi, nós também queremos saber o que Deus quer de nós. Queremos saber o que está reservado a cada um de nós.
O nosso Self, ou Si-mesmo, é a parte da psique que conhece boa parte dessas respostas, e, como propulsor do processo de individuação, tenta nos guiar para encontrarmos as respostas. Assim, a individuação é o tornar-se o que a pessoa já é potencialmente, mas de um modo mais profundo e consciente (STEIN, 2006, pg. 158), ou seja, carregamos dentro de nós muito do que precisamos para o pleno desenvolvimento de nossas vidas.
O processo de individuação é uma forma de maturação e de autorrealização da personalidade. Caracterizando-se pela harmonização, pelo consciente, de aspectos do inconsciente, sem haver, contudo, a identificação com quaisquer desses aspectos. É um processo de transformação individual que visa uma maior adaptação do indivíduo, em relação às suas realidades interna e externa.
O alcance da plenitude da nossa personalidade é um fim em si mesmo. Esse caminho para a individuação deve ser para o próprio bem da pessoa e não apenas para ela se sentir melhor ou dormir melhor (VON FRANZ, 1984, pg. 56). Esse processo consiste em tornar alguém feliz consigo mesmo e não em alguém se tornar feliz como em um jardim de infância (VON FRANZ, 1984, pg. 87), uma vez que essa última felicidade é advinda quase que totalmente da inconsciência.
A felicidade consigo mesmo não implica um estado de alegria pleno e constante, mas uma grande aceitação das possibilidades e das impossibilidades individuais. Devemos lembrar que a profunda unidade interior, em nível consciente é uma proeza rara (STEIN, 2006, pg. 157). Isso porque não se pode chegar perto do Self e do significado da vida, sem que se passe pelas trevas e pelos aspectos sombrios da personalidade (VON FRANZ, 1984, pg. 71).
O processo da individuação é penosos, cansativo, exigente, tal como ficar à deriva em um barco com a presença de um tigre. Segundo Jung (OC 9/1, pg. 288):
[O processo de individuação] É o velho jogo do martelo [consciência] e da bigorna [inconsciente]; entre eles, o paciente ferro é forjado num todo indestrutível, num individuum.
É algo que devemos ter cuidado, pois é um caminho com perigos, onde podemos ser possuídos por complexos do inconsciente, como a sombra ou a ânima/ânimus. Não é um processo de absorção ou de submissão ao inconsciente. Na individuação há um reconhecimento consciente da limitação do ego e uma clara percepção dos poderes do inconsciente, tornando-se possível a união desses opostos. Nessa união as partes continuam diferenciadas, mas contidas na consciência (STEIN, 2006, pg. 165).
Para Jung, o processo de individuação precisa do coletivo, da sociedade. Contudo, um dos primeiros passos da individuação é o isolamento, a reclusão; onde são criados novos valores próprios que podem ser devolvidos ou entregues, então, à sociedade (JUNG, OC 18/2, pgs. 25 e 26). A Vida de Pi parece retratar esse movimento em que nos recolhemos e nos confrontamos com nossos fantasmas interiores. Mas o contato com o outro é essencial para o encontro do Si-mesmo, pois é no outro que podemos nos enxergar, e fazemos isso por meio das nossas projeções.

                                                                    Richard Parker

Considerações finais
A Vida de Pi é uma obra de arte muito bonita e impactante. Podemos aprender muito, imageticamente, sobre os processos de lidarmos com o inconsciente a fim de alcançarmos uma plenitude de nossas personalidades.
Deve-se enfatizar que o filme deve ser analisado apenas como analogia a parte do processo de individuação. Jung fala que esse processo dura uma vida, sendo que na primeira metade da nossa vida o foco seria a estruturação do ego e da persona, quando nossa visão está voltada para fora, para buscarmos nosso lugar no mundo. Na segunda metade da vida, nossa visão volta-se para dentro, o Si-mesmo surge de maneira mais clara e buscamos uma harmonia interior. As pessoas começam a buscar mais um sentido da vida nessa segunda metade de suas existências.
Pi cresceu buscando o sentido de sua vida. Ele teve que passar por várias perdas, por um caminho árduo e penoso para que pudesse conhecer a si mesmo de maneira mais profunda.
As representações simbólicas que a psique criou foram uma forma de sobrevivência psíquica. Após o naufrágio, Pi viu assassinatos dentro do bote, inclusive o de sua mãe. A psique transformou esses eventos em algo menos pessoal e mais simbólico, de uma maneira muito bonita, para autopreservação individual. Tanto é que Pi fala ao repórter que ele pode escolher a história que preferir, e o mesmo escolhe a história com os animais.
Beleza igual foi a forma com a qual o filme lidou com a questão do enfrentamento da sombra e dos aspectos inconscientes. O relacionamento de Pi com o tigre é algo de grande aprendizado para nós. A sombra não pode ser subjugada, a anima não pode ser esquecida e o Si-mesmo deve ser respeitado. O inconsciente não pode ser absorvido nem suprimido, pois ele pode voltar-se contra nós (STEIN, 2006, pg. 168), e o filme mostra isso de maneira muito clara.
Em relação ao Self e a religiosidade, presente em todo o filme, vale lembrar o que diz Von Franz (1984, pg. 70): “quando há uma perda do ponto de apoio religioso, a pessoa se desintegra, torna-se presa fácil de afetos”. E esse aspecto também fica muito claro no filme, pois nos momentos em que Pi mais enfrenta o Superior, ele é castigado, ele sofre. Mas, esse mesmo agente que o faz sofrer, mostra-lhe o caminho a ser seguido.
Uma última análise a ser feita do filme é em relação à sua cena final. Ela mostra, de maneira colorida, o tigre entrando na floresta após eles terem chegado a terra firme. Depois que o tigre adentra a floresta, a imagem fica em preto e branco. Esse é um grande simbolismo de que a fantasia acabou. O que resta a Pi, nesse momento, é lidar com a realidade externa. O inconsciente colorido presente em sua psique, e em todo o filme, continua com ele, mas agora mais conhecido, mais integrado.
O preto no branco mostra que agora ele tem que conviver com a realidade externa e a interna, tal como o desafio proposto por Jung no caminho para a individuação.

Referências

HOPCKE, R. H. Guia para a Obra Completa de C.G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, C.G. O eu e o inconsciente (OC 7/2). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
_________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (OC 9/1). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
_________. Aion – estudo do simbolismo do si-mesmo (OC 9/2). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
_________. A vida simbólica (OC 18/2). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
MILLER, W. A sua sombra dourada. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
SANFORD, J. A. Parceiros invisíveis: o masculino e o feminino dentro década um de nós. São Paulo: Paulinas, 1986.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma: uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2006.
VON FRANZ, M.L. A individuação nos contos de fada. São Paulo: Paulus, 1984.
WHITMONT, E. C. A busca simbólica. In.: ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.). Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.